O SACI PERERÊ, PAI ZÉ E A
CABAÇA PERDIDA
Versão de Regina Lacerda
Por aquele tempo o
Saci andava desesperado. Tinham-lhe surrupiado a cabaça de mandinga. O moleque,
extremamente irritado, vagueava pelos fundões de Goiás.
Pai Zé, saindo um
dia à cata dumas raízes de mandioca castelã que Sinhá-dona lhe pedira, topou
com ele nos grotões da roça.
O agricultor,
abandonando a enxada e de queixo caído, olhava pasmado o ser fantástico que lhe
fazia caretas e trejeitos, a saltar no seu único pé, e fungando terrivelmente.
- Vancê quer alguma
coisa? – perguntou Pai Zé admirado, vendo agora o moleque rodopiar como o pião
de ioiô.
- Olha velho, -
respondeu o Saci, - Vancê gosta de Sá Quirina, aquela mulata de sustância: pois
eu lhe dou a mandinga[1] com que ela há de ficar enrabichada,
se Vancê me arranjá uma cabaça que perdi.
Pai Zé, louco de
contentamento, prometeu. A cabaça, ele sabia-o, fora amoitada pelo Benedito
Galego, um caboclo sacudido que, cansado das malandrices do moleque, a tinha
roubado das grimpas[2] do jatobá grande, lá nas roças do
ribeirão.
Pai Zé fora uns do
que o tinham aconselhado, para obstar que o Saci, como era de seu costume
quando incomodado, tornasse a levantar as árvores da derrubada que o Benedito
fizera nessas terras.
Arrastando as
alpercatas de couro cru pelas terras de Sô Feitor, Pai Zé capengava satisfeito
e inchado com a promessa do Saci.
Desde Santo Antônio
que ele rondava Sá Quirina, procurando sempre ocasião de lhe mostrar que apesar
dos seus sessenta e cinco anos e meio, um olho de menos e falta de dente na
boca, não era homem para se desprezar assim por um canto, não, que sustância
ele ainda tinha no peito para aguentar com a mulata e mais a trouxa
de Sá Quitéria, sua mulher; Ah, se ele tinha!
Mas a cafuza[3] era dura de gente convencer. Toda
a eloquência que ele penosamente engendrara em seu bestunto de
africano e que lhe tinha despejado pela festa de São Pedro, não teve outro
resultado senão a fuga da roxa quando o encontrava.
Mas agora, gaguejava
o preto, eu lhe amostro, - que o saci é mesmo bicho bom pra deitar um feitiço.
Com a rica dádiva
dum quartilho de cachaça e meia-mão do seu fumo pixuá, Pai Zé alcançou do
galego a cabaça desejada.
Sá Quitéria, porém,
não via com bons olhos o afã de seu velho pela posse da milonga[4].
E ela também sabia deitar quebrando, ah, se sabia!
- Perguntassem a
bruxa de Nhá Benta, que desde as vésperas de reis estava entrevada na trempe do
jirau. E não era o zarolho e cambaio do seu homem que a enganaria.
Por isso a velha
ciumenta estava de tocaia, desejosa por saber de seu intento. Lá ia Pai Zé,
arrastando novamente as alpercatas de couro cru pelas terras de Sô Feitor, à
entrevista do Saci. Atrás dele, sorrateira, lá ia também Sá Quitéria.
O negro chegou aos
grotões e chamou pelo Saci, que de pronto apareceu.
-Toma lá a sua
cabaça de mandinga, Seu Saci, e dá-me cá o feitiço pra Sá Quirina
O moleque
desbarretou-se, tirou uma pitada grossa da cumbuca, fungou, e entregando o
resto a Pai Zé, disse: "Dá-lhe a cheirar esta pitada, que a crioula é sua
escrava".
"Ah, velho dos
infernos, bem que conheci a tua tramóia", gritou Sá Quitéria furiosa,
saindo do bambuzal e segurando-o pelo papo.
E, na luta do casal,
lá se foi o feitiço que o pobre Pai Zé adquirira com o sacrifício dum quartilho[7] de cachaça, e a meia mão do seu bom
fumo pixuá[8].
Desde então, nunca
mais houve paz no casal, que se devorava às pancadas; e Pai Zé arrenegava sem
descanso o maldito que introduzira a discórdia no seu rancho.
Fonte: Fonte: “O Saci Pererê, Pai Zé e a Cabaça Perdida /
Versão de Regina Lacerda, texto extraído da internet, acessado em agosto de
2011; disponível em
http://www.conteudoanimal.com.br/noticias/ver.asp?manchete='o%20saci%20perer%ea'
[1] MANDINGA = MAN.DIN.GA:
s.f. 1 Feitiçaria; bruxaria. 2 Ação de
mandingar. s.2g. 3 Indivíduo dos mandingas. adj.2g. 4 Relativo aos
mandingas, grupo de negros que habitam as costas do oeste da África. Dividem-se
em pequenas tribos, cada uma delas possuindo um dialeto distinto. São
maometanos e um dos mais adiantados povos negros.
[2] Grimpas de Grimpa = GRIM.PA: s.f. 1 Lâmina ordinariamente de metal e móvel em
torno de um eixo vertical que gira com o vento e indica a sua direção. 2
Cata-vento. 3 Ventoinha. 4 Crista, o ponto mais elevado. 5 Cocuruto. 6 Fig. Voz
altaneira orgulhosa, de rezingão. 7 Gír. Cabeça. 8 Bras. S Ramo de pinheiro. 9
Levantar a grimpa: mostrar-se altaneiro, insubmisso.
[3]
CAFUZA: Filha de pessoa de raça Negra com mulata
[4]MILONGA = MI.LON.GA: s.f. 1 Bras. RS Espécie de música de origem
platina, toada dolente que se canta ao som do violão ou da guitarra. 2 No
candomblé e na macumba, bruxado, feitiço, sortilégio. 3 Canto e dança populares
nos subúrbios de Montevidéu e Buenos Aires, no fim do século XIX, do tipo da
habanera e do tango andaluz e que foram absorvidos pelo tango.
[5]COVOADA = CO.VO.A.DA:
s.f. 1 Série de covas. 2 Bras. Encosta
ou ondulação das serras, com alguma vegetação; vale entre duas coxilhas.
[6]Grotões plural de GROTÃO = GRO.TÃO: s.m. 1
Bras. Grota grande. 2 Depressão funda entre montanhas.
[7] QUARTILHO = QUAR.TI.LHO: s.m. 1 A quarta parte de uma canada. 2 Porção
correspondente a meio litro. 3 Unidade de capacidade do sistema inglês,
equivalente a 0,568 l.
[8] PIXUÁ = PI.XU.Á: s.m. 1 Bras. Erva prostrada, da família das
euforbiáceas (Euphorbia portucaloides). 2 Bras. RS Fumo forte e de qualidade
inferior.