terça-feira, 20 de agosto de 2013

O SACI PERERÊ, PAI ZÉ E A CABAÇA PERDIDA

 O SACI PERERÊ, PAI ZÉ E A CABAÇA PERDIDA
Versão de Regina Lacerda

Por aquele tempo o Saci andava desesperado. Tinham-lhe surrupiado a cabaça de mandinga. O moleque, extremamente irritado, vagueava pelos fundões de Goiás.
Pai Zé, saindo um dia à cata dumas raízes de mandioca castelã que Sinhá-dona lhe pedira, topou com ele nos grotões da roça.
O agricultor, abandonando a enxada e de queixo caído, olhava pasmado o ser fantástico que lhe fazia caretas e trejeitos, a saltar no seu único pé, e fungando terrivelmente.
- Vancê quer alguma coisa? – perguntou Pai Zé admirado, vendo agora o moleque rodopiar como o pião de ioiô.
- Olha velho, - respondeu o Saci, - Vancê gosta de Sá Quirina, aquela mulata de sustância: pois eu lhe dou a mandinga[1] com que ela há de ficar enrabichada, se Vancê me arranjá uma cabaça que perdi.
Pai Zé, louco de contentamento, prometeu. A cabaça, ele sabia-o, fora amoitada pelo Benedito Galego, um caboclo sacudido que, cansado das malandrices do moleque, a tinha roubado das grimpas[2] do jatobá grande, lá nas roças do ribeirão.
Pai Zé fora uns do que o tinham aconselhado, para obstar que o Saci, como era de seu costume quando incomodado, tornasse a levantar as árvores da derrubada que o Benedito fizera nessas terras.
Arrastando as alpercatas de couro cru pelas terras de Sô Feitor, Pai Zé capengava satisfeito e inchado com a promessa do Saci.
Desde Santo Antônio que ele rondava Sá Quirina, procurando sempre ocasião de lhe mostrar que apesar dos seus sessenta e cinco anos e meio, um olho de menos e falta de dente na boca, não era homem para se desprezar assim por um canto, não, que sustância ele ainda tinha no peito para aguentar com a mulata e mais a trouxa de Sá Quitéria, sua mulher; Ah, se ele tinha!
Mas a cafuza[3] era dura de gente convencer. Toda a eloquência que ele penosamente engendrara em seu bestunto de africano e que lhe tinha despejado pela festa de São Pedro, não teve outro resultado senão a fuga da roxa quando o encontrava.
Mas agora, gaguejava o preto, eu lhe amostro, - que o saci é mesmo bicho bom pra deitar um feitiço.
Com a rica dádiva dum quartilho de cachaça e meia-mão do seu fumo pixuá, Pai Zé alcançou do galego a cabaça desejada.
Sá Quitéria, porém, não via com bons olhos o afã de seu velho pela posse da milonga[4]. E ela também sabia deitar quebrando, ah, se sabia!
- Perguntassem a bruxa de Nhá Benta, que desde as vésperas de reis estava entrevada na trempe do jirau. E não era o zarolho e cambaio do seu homem que a enganaria.
Por isso a velha ciumenta estava de tocaia, desejosa por saber de seu intento. Lá ia Pai Zé, arrastando novamente as alpercatas de couro cru pelas terras de Sô Feitor, à entrevista do Saci. Atrás dele, sorrateira, lá ia também Sá Quitéria.
O negro chegou aos grotões e chamou pelo Saci, que de pronto apareceu.
-Toma lá a sua cabaça de mandinga, Seu Saci, e dá-me cá o feitiço pra Sá Quirina
O moleque desbarretou-se, tirou uma pitada grossa da cumbuca, fungou, e entregando o resto a Pai Zé, disse: "Dá-lhe a cheirar esta pitada, que a crioula é sua escrava".
E desapareceu, fungando, pulando no seu único pé, pela covoada[5] e pelos grotões[6] da roça.
"Ah, velho dos infernos, bem que conheci a tua tramóia", gritou Sá Quitéria furiosa, saindo do bambuzal e segurando-o pelo papo.
E, na luta do casal, lá se foi o feitiço que o pobre Pai Zé adquirira com o sacrifício dum quartilho[7] de cachaça, e a meia mão do seu bom fumo pixuá[8].
Desde então, nunca mais houve paz no casal, que se devorava às pancadas; e Pai Zé arrenegava sem descanso o maldito que introduzira a discórdia no seu rancho.
Porque, o Ioiô, concluiu o preto velho, que me contou essa história, disse que a todo aquele que vê e fala com o Saci, acontece sempre uma desgraça
Fonte: Fonte: O Saci Pererê, Pai Zé e a Cabaça Perdida / Versão de Regina Lacerda, texto extraído da internet, acessado em agosto de 2011; disponível em http://www.conteudoanimal.com.br/noticias/ver.asp?manchete='o%20saci%20perer%ea'





[1] MANDINGA = MAN.DIN.GA: s.f. 1 Feitiçaria; bruxaria. 2 Ação de mandingar.  s.2g. 3 Indivíduo dos mandingas.  adj.2g. 4 Relativo aos mandingas, grupo de negros que habitam as costas do oeste da África. Dividem-se em pequenas tribos, cada uma delas possuindo um dialeto distinto. São maometanos e um dos mais adiantados povos negros.

[2] Grimpas de Grimpa = GRIM.PA: s.f. 1 Lâmina ordinariamente de metal e móvel em torno de um eixo vertical que gira com o vento e indica a sua direção. 2 Cata-vento. 3 Ventoinha. 4 Crista, o ponto mais elevado. 5 Cocuruto. 6 Fig. Voz altaneira orgulhosa, de rezingão. 7 Gír. Cabeça. 8 Bras. S Ramo de pinheiro. 9 Levantar a grimpa: mostrar-se altaneiro, insubmisso.
[3] CAFUZA: Filha de pessoa de raça  Negra com mulata
[4]MILONGA = MI.LON.GA: s.f. 1 Bras. RS Espécie de música de origem platina, toada dolente que se canta ao som do violão ou da guitarra. 2 No candomblé e na macumba, bruxado, feitiço, sortilégio. 3 Canto e dança populares nos subúrbios de Montevidéu e Buenos Aires, no fim do século XIX, do tipo da habanera e do tango andaluz e que foram absorvidos pelo tango.
[5]COVOADA = CO.VO.A.DA: s.f. 1 Série de covas. 2 Bras. Encosta ou ondulação das serras, com alguma vegetação; vale entre duas coxilhas.

[6]Grotões plural de GROTÃO = GRO.TÃO: s.m. 1 Bras. Grota grande. 2 Depressão funda entre montanhas.

[7] QUARTILHO = QUAR.TI.LHO: s.m. 1 A quarta parte de uma canada. 2 Porção correspondente a meio litro. 3 Unidade de capacidade do sistema inglês, equivalente a 0,568 l.

[8] PIXUÁ = PI.XU.Á: s.m. 1 Bras. Erva prostrada, da família das euforbiáceas (Euphorbia portucaloides). 2 Bras. RS Fumo forte e de qualidade inferior.