YNARI: A MENINA DAS CINCO TRANÇAS
(INFANTIL)
Era uma vez uma menina que tinha cinco tranças lindas e se chamava
Ynari. Ela gostava muito de passear perto da sua aldeia, ver o campo, ouvir os
passarinhos, e sentar-se junto à margem do rio.
Certa tarde, já o Sol se punha, Ynari ouviu um barulho. Não eram
os peixes a saltar na água, não era o cágado que às vezes lhe fazia companhia,
nem era um passarinho verde. Do capim alto saiu um homem muito pequenino com um
sorriso muito grande. E embora ele não fosse do tamanho dos homens da aldeia de
Ynari, ela não se assustou.
O homem muito pequenino andava devagarinho e devagarinho se
aproximou.
– Olá! – cumprimentou.
– Olá – respondeu Ynari, receando que estivesse a falar alto de
mais para o tamanho do ouvido
do homem muito pequenino. – Desculpa, mas não sei o teu nome...
– Eu também não sei o meu nome... – desculpou-se o homem muito
pequenino. – Mas chamam-me homem pequenino.
– Ah, está bem... – sorriu Ynari, enquanto se deitava na relva
para ficar mais perto dele.
– Eu tenho um nome só, quer dizer, uma só palavra: chamo-me Ynari.
– Ynari é um nome muito bonito – o homem pequenino sentou-se,
ficando, assim, ainda mais pequeno.
– Posso fazer uma pergunta, homem muito pequenino?
– Podes fazer muitas perguntas.
– De onde vens?
– Venho da minha aldeia, que fica mais para cima, junto à nascente
do rio.
– E lá, na tua aldeia, são todos pequeninos?
– Sim, somos todos mais pequenos que vocês, quer dizer, depende
daquilo que entendemos por «PEQUENO». Não achas?
– Nunca tinha pensado nisso. Sempre pensei que uma coisa menor
fosse uma coisa pequena...
– Pode não ser assim... Conheces a palavra «CORAÇÃO»?
– Conheço! – sorriu Ynari. – E não é só uma palavra, é isto que
bate dentro de nós – e mostrou no seu peito onde o coração batia.
– Claro, e... O coração é pequeno para ti?
– É... e não é! Cabe tanta coisa lá dentro, o amor, os nossos
amigos, a nossa família...
– Vês? – disse o homem mais pequeno que ela. – Às vezes uma coisa
pequenina pode ser tão grande...
Os dois ficaram por um tempo calados, olhando o Sol que, do outro
lado do rio, quase já tinha desaparecido. Assim, tão amarelada que estava a
tarde, parecia que o Sol se ia afogar no rio e que os peixes, saltando, se
queimavam nos seus raios avermelhados.
Estiveram algum tempo assim, até que Ynari começou a brincar com
as suas tranças: eram cinco tranças lindas, negras, compridas.
A menina tinha olhos enormes que brilhavam muito e lábios carnudos
muito bonitos.
– E tu, de onde vens? – perguntou o homem mais pequeno que Ynari.
– Eu venho daquela aldeia ali – apontou a menina na direcção das
cubatas. – Vivo ali com a minha mãe, o meu pai, a minha avó e o meu povo.
– E quem te faz as tranças?
– Ninguém me faz estas tranças, porque elas não se desfazem... A
minha avó diz que eu já nasci com as tranças e que um dia vou saber porquê. Eu
gosto muito de brincar com as minhas tranças.
Levantaram-se, os dois, e caminharam junto ao rio. Agora o homem
mais pequenino que Ynari já não lhe parecia tão pequenino, nem era estranho
caminhar ao seu lado, embora ele fosse muito mais baixo do que a menina. De vez
em quando, Ynari afastava os capins mais altos para que o homem mais pequeno
pudesse caminhar livremente.
– Não tens medo dos bichos? – ela perguntou.
– Não. Os bichos não fazem mal nenhum... E mesmo a palavra «MEDO»
pode ser vivida de várias maneiras.
– Mas quando estás perto de uma palanca negra gigante, tens medo,
ou não?
– Sabes, Ynari, nunca estive muito perto de uma palanca negra
gigante embora já a tenha visto muitas vezes. E tu?
– Eu só a vejo de longe.
– A palanca negra gigante correu até perto de ti, fez-te mal?
– Não, nunca.
– Vês... Não precisas de usar a palavra «MEDO».
– Também acho... – disse Ynari, dando a mão ao homem simplesmente
pequeno.
Já era mesmo de noite. O céu não tinha
nuvens nenhumas e estava cheio de estrelas para se contar. Os dois olharam o
céu, que era escuro e brilhante ao mesmo tempo.
– Olha tantas estrelas...
– Estou a olhar – disse o homem
simplesmente pequeno.
– Parece que dançam! – Ynari sorria de
contente.
– É verdade... parece mesmo. Deve ser
altura de usarmos a palavra «ADMIRAÇÃO», não achas? – sorriu o homem
simplesmente pequeno.
– Acho, sim... Mas, olha, tenho que ir.
– Se tens que ir, tens que ir.
– Amanhã posso ver-te? – perguntou Ynari.
– Podes. Amanhã estarei ali, no mesmo
sítio onde hoje nos encontrámos, junto ao rio, ao nascer do Sol.
– Amanhã podemos brincar com mais
palavras?
– Claro. Podemos sempre brincar com as
palavras...! – sorriu o homem que já não parecia tão pequenino.
– Bons sonhos – despediu-se Ynari, a
correr. – Até amanhã.
– Até amanhã. Bons sonhos para ti também.
Ynari voltou a correr para a sua aldeia e
decidiu não dizer a ninguém que tinha encontrado um homem que era pequenino,
mas que não era tão pequenino assim. Os caçadores tinham regressado, e o povo
estava à volta da fogueira, contente com a caçada, de modo que ninguém lhe ia
ralhar por chegar tarde. Ynari não gostava de ver os olongos mortos, embora a
sua avó lhe tivesse explicado que os homens da sua aldeia só caçavam para comer.
Já deitada, a menina das cinco tranças
sentiu que a avó se aproximava. A avó, que se mexia devagarinho porque era
muito velhinha (e que também estava a ficar pequenininha embora não tão
pequenininha como o homem que já não lhe parecia tão pequenino), veio deitar-se
ao pé dela.
– Estás triste por causa dos olongos? – a
avó perguntou.
– Não… Hoje o meu coração não ficou
triste. Hoje… – e Ynari quase revelou o seu segredo.
– Hoje o quê? – perguntou a avó.
– Nada, avó… Não te posso contar ainda.
Mas hoje foi um dia muito especial para mim – disse Ynari, deu um beijinho à
avó e adormeceu.
No dia seguinte, muito cedo, mesmo antes
de os galos cantarem, Ynari afastou-se da aldeia em direção ao rio. Sentou-se e
ouviu ruídos nos capins altos.
O homem que agora não lhe parecia tão
pequeno apareceu com o mesmo
sorriso nos lábios. Ela virou-se e
cumprimentou:
– Bom dia, homem pequenino. Estou contente
por te ver.
– Bom dia, menina das cinco tranças…
Também o meu coração se alegrou quando te vi.
– Sabes, esta noite tive um sonho...
– Queres contar-me? – o homem pequeno
sentou-se.
– Sonhei que eu e tu estávamos aqui
sentados, em frente ao rio. E depois íamos para muito longe, acho que era a tua
aldeia...
– E depois?
– Depois falávamos com muitos homens... E
havia muitas palavras, e crianças... Vi muitas imagens, não me lembro de tudo.
– Se calhar devemos aqui usar a palavra «CONFUSÃO»...
É isso? – sorriu o homem menos pequenino...
– É mesmo – desatou a rir Ynari, a menina
das cinco tranças.
– É uma grande confusão, sim...
Estavam assim os dois conversando sobre
as palavras, a importância que as palavras tinham na vida de cada um, como as
usavam, quando as usavam, com quem as usavam, e que significados tinham para o
coração de cada um deles.
Ynari tentou explicar-lhe que havia
palavras que para ela tinham mais do que um significado ou que lhe provocavam
mais do que uma só alegria ou uma só tristeza. A menina disse que era difícil
explicar às crianças da sua idade como gostava de palavras, e o que as palavras
podiam fazer entre duas pessoas.
– Sempre gostei muito das palavras, mesmo
daquelas que ainda não conheço, sabes? Existem palavras que estão no nosso
coração e que nunca es- tiveram na nossa boca... Nunca sentiste isso? –
perguntou finalmente Ynari, depois de tantas e tantas palavras ditas.
O homem mais ou menos pequeno escutou,
atento a tudo. E ia começar a falar quando, do outro lado do rio, lá em cima de
uma montanha, um grupo de homens com armas na mão começou a disparar contra
outro grupo de homens com armas na mão.
Dali, daquele lado do rio, Ynari e o
homem mais ou menos pequeno podiam ver tudo: aqueles homens não gostavam uns
dos outros, e usavam as armas e as balas e as vidas uns dos outros para mostrar
a sua raiva. Ynari estava assustada, mas não se mexeu. O homem mais ou menos
pequeno fechou um bocadinho os olhos, como fazem as pessoas que querem ver
melhor coisas que estão a acontecer muito longe. Depois os tiros pararam e
alguns homens correram em direção a esta margem do rio. Ynari e o homem mais ou
menos pequeno esconderam-se atrás dos capins altos e agacharam-se sem fazer
barulho. Ynari tremia de medo e os seus olhos mostravam que estava assustada.
Apertou com muita força a mão daquele homem pequeno, e ele disse-lhe baixinho:
– Não tenhas medo, Ynari...
Os homens com armas na mão vieram e
puseram-se a dormir. O homem pequeno saiu dos capins altos, foi até muito perto
deles. Mexia-se de um modo estranho e dizia, baixinho, umas tantas palavras. De
repente, as armas dos homens que estavam a dormir transformaram-se em armas de
barro.
Ynari espreitava nos capins altos e ficou
com a boca toda aberta de espanto: era um homem pequeno e mágico!
O homem pequeno e mágico voltou
devagarinho, pegou na mão de Ynari e caminharam para norte, sempre junto ao
rio. Parecia que não tinham caminhado muito, mas a vegetação era toda
diferente: as flores eram mais amareladas e as árvores mais altas.
Depois afastaram-se do rio e finalmente
pararam junto de duas enormes árvores que, lá bem em cima, se tocavam.
– Para isto... podemos usar as palavras «PORTÃO
DE ÁRVORE»? – disse Ynari, enquanto olhava muito espantada, porque o «PORTÃO
DE ÁRVORE» era muito alto e bonito.
– Sim – respondeu o homem pequeno e
mágico. – Podes usar essas palavras... Este é o portão de árvore onde começa a
minha aldeia!
– Ah! – exclamou Ynari, cheia de
curiosidade.
Entraram na aldeia. O que pisavam era um
capim muito curto, muito verde, muito bom de se pisar porque era suave e estava
sempre molhado. Quando olhou com mais cuidado, Ynari viu muitas árvores
pequenas e percebeu que eram as casas dos homens pequenos. Eram, como ela mesma
pensou, «AS CASAS PEQUENAS DOS HOMENS PEQUENOS».
Muitos homens e mulheres (todos pequenos)
espreitavam das suas árvores pequenas para olhar a menina que passava de mãos
dadas com o homem pequeno e mágico.
– És tu o soba da aldeia? – Ynari
perguntou.
– Nao – sorriu o homem pequeno e mágico.
– Nesta aldeia não temos soba.
Pararam diante de uma árvore muito
antiga. O homem pequeno e mágico roçou o cotovelo no casco da árvore, e
ouviram-se passinhos vindos de dentro. Ynari encolheu-se atrás do homem pequeno
e mágico.
– Não tenhas medo, Ynari, quero-te
apresentar duas pessoas muito especiais.
Era um velho muito velho com umas barbas
muito grandes que quase chegavam ao chão. Caminhava com a ajuda de um pau
torto, muito torto, que era como se fosse a sua bengala pequenina.
– Ynari: este é o velho muito velho que
inventa as palavras – disse o homem pequeno e mágico.
O velho olhou para cima, para o rosto
belo de Ynari, e sorriu. Bateu três vezes com a sua bengala pequenina no chão,
que era a sua maneira de dizer que estava contente. Atrás dele apareceu outra
velha muito velhinha, só que não tinha barbas, tinha uma trança branca muito
comprida.
– Ynari: esta é a velha muito velha que
destrói as palavras – disse o homem pequeno e mágico.
Logo depois, Ynari foi sendo apresentada
a outros homens pequenos e mulheres pequenas. Enquanto se preparava uma festa
pequenina por causa da chegada de Ynari, ela afastou-se com o homem pequeno e
mágico e sentaram-se numa pedra alta, de onde se via toda a aldeia dos homens
pequenos.
– Tu és um mágico, homem pequeno! – disse
Ynari, espantada.
– Todos somos mágicos, Ynari. Aqui vais
aprender que todos somos mágicos...
– Tu encantas as armas! As armas ficaram
de barro – disse, espantada, Ynari. – Imagino quando eles agora forem disparar!
– desatou a rir a menina das cinco tranças.
– Aquelas armas já não disparam. Agora
podemos utilizar a palavra «INÚTIL».
– O que é «INÚTIL»? – quis saber
Ynari.
– É aquilo que já não é útil, ou seja,
que já não serve para nada.
– Ah... Diz-me uma coisa – Ynari olhou
para o homem pequeno e mágico. – Todos somos mesmo mágicos?
– Sim, todos. Mas cada um tem que
descobrir a sua magia.
– Eu queria descobrir a minha...
– Já não falta muito – disse o homem
pequeno e mágico enquanto se levantava. – Já não falta muito, Ynari.
Entretanto a festa estava pronta.
Alguns homens pequenos com batuques
pequenininhos começaram a tocar, outros dançavam, e muitos riam alegremente.
Comeram, e Ynari teve que comer muitas vezes porque a comida era pequenina e
ela estava com muita fome.
Depois a música parou.
Todos se sentaram e então Ynari, a menina
das cinco tranças, viu que as pessoas pequenas se afastavam para deixar passar
o velho muito velho que inventa as palavras e a velha muito velha que destrói
as palavras.
Ynari sentou-se também e ficou a olhar.
No meio das pessoas havia uma enorme
cabaça, mas mesmo assim, claro, era uma cabaça pequena, onde o velho muito
velho e a velha muito velha deitavam ervas e diziam algumas palavras que ela
nunca tinha ouvido nem conseguia sequer entendê-las para as repetir dentro de
si.
Alguns homens pequenos aproximaram-se da
velha muito velha que destrói as palavras, e cada um deles disse, no ouvido
dela, uma palavra. A velha muito velha que destrói as palavras ouviu todas as
palavras que os homens pequenos tinham trazido de fora da aldeia e decidiu que
ia destruir algumas delas.
– São palavras que já não servem para
nada, e têm que desaparecer... – disse a velha muito velha que destrói as
palavras.
– São palavras «INÚTEIS», é isso?
– perguntou baixinho Ynari.
– Sim – confirmou o homem pequeno e
mágico.
Depois, outro grupo de homens pequenos
aproximou-se da roda de pessoas. O velho muito velho que inventa palavras pôs
novas ervas na cabaça enorme, mas pequena, disse também algumas palavras que
Ynari não conseguia lembrar, mesmo assim, estando ainda as palavras tão
frescas. Os homens pequenos punham a mão na cabaça enorme, mas pequena, bebiam
um pouco do líquido e aproximavam-se do velho muito velho que inventa palavras.
Ele dizia uma palavra no ouvido de cada um e eles abandonavam a aldeia dos
homens pequeninos para voltarem só no próximo cacimbo.
O homem pequeno e mágico foi chamado ao
centro, e apresentou Ynari, a menina das cinco tranças.
Também Ynari foi chamada ao centro pela
velha muito velha e pelo velho muito velho.
Ela foi devagarinho, caminhando
envergonhada por estar tanta gente pequenina a olhar para ela.
– Agora és tu, Ynari – disse o homem
pequeno e mágico
– Vou saber a minha magia? – perguntou
Ynari.
O homem pequeno e mágico foi-se sentar, e
Ynari, a menina das cinco tranças, ficou perto da cabaça enorme, mas pequena,
ouvindo a velha e o velho.
A velha muito velha que destrói as
palavras falou assim:
– Cada pessoa sua magia; cada árvore sua
raiz. O peixe só sabe nadar na água. O humbi-humbi preso, nas gaiolas, morre.
Coisa de metal que sai metal e fumo, destruímos. Coisa de metal que vira
semente e mata, destruímos. De noite, olhar e respeitar as estrelas. De dia,
olhar e imitar os animais. Primeiro somos crianças, depois somos caçadores,
depois temos crianças, depois ficamos a olhar as crianças. O cágado, sempre
lento, é quem chega primeiro. Mais sabedoria tem a palanca negra gigante que só
olha os homens de longe. Falei.
Ynari estava quietinha porque sabia que
tinha de ouvir os mais-velhos sem nada dizer, mas olhava para o homem pequeno e
mágico, porque pouco entendia aquelas palavras. Então, o velho muito velho que
inventa as palavras falou assim:
– Cada rio suas águas; cada céu suas
nuvens. Peixe dentro da água brinca, fora da água sofre. O humbi-humbi não
conhece gaiola, só respeita nuvem. Coisa de metal que sai fumo vira barro.
Coisa de metal como semente, vira embondeiro. De noite, as estrelas olhar e uma
só escolher. De dia, os animais caçar, seja, o alimento. Primeiro somos
crianças e coração bate. Depois somos caçados por nosso coração. Depois
descobrimos criança no coração. Depois a criança nos ensina outros caminhos do
coração. O cágado também sabe perder. A palanca negra gigante também sabe
fugir. Falei.
Então, juntos, os velhos deitaram ervas
na cabaça enorme, mas pequena. Olharam durante algum tempo para Ynari, e
finalmente sorriram. Parecia que os dois velhos muito velhos falavam numa só
voz:
– Não temos uma magia para te dar, tens
que ser tu a descobrir a tua magia...Todas as cacimbas nos reunimos aqui, para
destruir palavras que já não servem, e inventar algumas que vão servir para
alguma coisa. Nós conhecemos a sombra da tua magia, mas só tu podes saber onde
está a própria magia. Hoje queremos oferecer-te uma palavra e dar-te uma
fórmula.
Ynari sorriu, estava contente, sentiu que
todas aquelas palavras lhe eram muito «ÚTEIS».
– Leva contigo a palavra «PERMUTA»
– disseram-lhe.
– E a fórmula? – perguntou Ynari.
– A fórmula está dentro do teu coração.
Ynari estava muito contente ao sair da
aldeia dos homens pequeninos, e não ficou triste com a despedida. O homem
pequeno e mágico acompanhava-a, e voltaram muito depressa para junto do rio.
– Tenho que ir. Amanhã posso ver-te?
– Sim, claro que podes ver-me. Amanhã cá
estarei.
– Bons sonhos para ti.
– Bons sonhos para ti também, menina das
cinco tranças.
– Sabes uma coisa? – disse Ynari.
– O que é?
– Os sonhos ajudam-me a viver. Acho que
eles também me vão ajudar a descobrir a minha magia…
Ynari foi a correr em direção à sua
aldeia.
Era o segundo dia a seguir à caçada e
ninguém se zangou por ela ter chegado um pouco mais tarde.
Ynari foi-se deitar e teve um sonho com
muitas palavras novas. Durante o sonho, um velho muito velho que explica o
significado das palavras explicou-lhe o que queria dizer a palavra «PERMUTA».
Ela fez muitas perguntas a esse velho muito velho, e finalmente pensou que uma
permuta era uma troca justa, em que alguém dá alguma coisa e também recebe
algo, pode não ser do mesmo tamanho, ou da mesma cor, ou até do mesmo sabor...
Mas Ynari entendeu que numa permuta é bom que duas pessoas, ou dois povos,
fiquem contentes com o resultado dessa troca.
A menina das cinco tranças acordou muito
cedo nesse dia.
Caminhou em direção ao rio. As suas águas
estavam calmas e Ynari pensou que se calhar os peixes ainda estavam a dormir, e
talvez estivessem mesmo a sonhar.
Dos capins altos saiu, mais uma vez, o
homem pequeno e mágico.
– Bom dia, homem pequeno e mágico –
sorriu Ynari. – Estou contente por te ver!
– Bom dia, menina das cinco tranças. Eu
também estou contente por te ver.
– Sabes, esta noite tive mais um sonho.
– E queres contar-me? – sentou-se o homem
pequeno e mágico.
– Sonhei primeiro com um velho muito
velho que explica o significado das palavras.
– Sim, sei quem é.
– E ele explicou-me o significado da
palavra «PERMUTA»... Mas eu também queria perguntar coisas sobre a
palavra «GUERRA». Eu até sei como usam essa palavra, mas... para que
serve a palavra «GUERRA»?
– Sabes, Ynari, embora eu não seja o
velho muito velho que explica o significado das palavras, também eu tenho
guardado no meu coração o significado de algumas palavras. E eu acho que a
palavra «GUERRA» não serve para nada!
– E a palavra «EXPLOSÃO»?
– Eu acho que a palavra «EXPLOSÃO»
só devia ser usada noutras situações, não em situações de guerra.
– Em que situações? – perguntou Ynari,
enquanto olhava para o rio, porque os peixes já saltavam, já tinham acordado.
– Queres pensar comigo? – disse o homem
pequeno e mágico.
– Começa tu – pediu Ynari.
– Então, eu acho que a palavra «EXPLOSÃO»
podia ser mais utilizada entre as estrelas. Quando elas chocam, nós aqui no
planeta Terra vemos uma coisa linda acontecer no céu...
– Ah!, que bonito – exclamou Ynari. – E
uma «EXPLOSÃO DE ALEGRIA», pode ser?
– Claro! – riu bem alto o homem pequeno e
mágico. – E uma «EXPLOSÃO DE CORES»?
– Também... Também pode ser.
Estiveram um bom tempo em silêncio
observando os peixes que nadavam e os pássaros que voavam. Realmente, quando se
sabe ver as coisas simples da vida, descobre-se que o mundo é muito, muito
bonito.
Ynari, a menina das cinco tranças, deu a
mão ao homem pequeno e mágico, e foram caminhando junto ao rio, sempre para sul.
– Eu acho que já descobri a minha magia –
disse a menina. – Podes vir comigo a cinco aldeias?
– Posso, se quiseres que eu vá contigo...
– Quero. Quero que vejas o que eu vou
fazer e que depois vás à tua aldeia dar um recado meu à velha muito velha que
destrói as palavras
– Está bem – concordou o homem pequeno e
mágico.
Ynari tinha aprendido com o homem pequeno
que um sítio fica muito perto se quisermos que esse sítio esteja perto de nós.
Caminharam muito, mas não estavam
cansados, e assim chegaram à primeira aldeia. Ynari bateu as palmas e o soba da
aldeia veio falar com eles.
– Bom dia, mais-velho – Ynari
cumprimentou. Mas o mais-velho não escutou porque era surdo. Então Ynari falou
com ele por gestos e ele entendeu.
– Bom dia, menina – disse, por gestos, o
mais-velho.
– Diz-me uma coisa: esta aldeia está em
guerra?
– Sim, estamos em guerra com outra aldeia.
– E porquê?
– Porque nós não ouvimos os passarinhos,
e eles ouvem! E nós também queremos ouvir os passarinhos, as quedas-d'água, a
voz das pessoas – gesticulou o mais-velho.
– Já entendi, mas diz-me uma coisa...
– O que é? – perguntou o mais-velho.
– Se eu vos ensinar a ouvir os
passarinhos, vocês deixam de estar em guerra?
– Sim. Nós só queremos saber usar a
palavra «OUVIR».
– Muito bem. Então peço-te que juntes
todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu
vou ensinar-vos a palavra «OUVIR».
Assim foi.
Preparou-se a festa, uma cabaça enorme
foi posta ao lume, e toda a aldeia foi chamada para estar presente. Afinal,
estava na aldeia uma menina com cinco tranças que ia ensinar a palavra «OUVIR».
Ynari pediu que todos os habitantes da
aldeia fizessem uma fila, trouxessem do rio um bocadinho de água na mão, e
pusessem essa água na cabaça. A fogueira já estava acesa, já todos tinham posto
o seu bocadinho de água na cabaça, quando Ynari disse algumas palavras, e
depois ouviu-se a palavra «PERMUTA». Com a catana do mais-velho ela
cortou uma trança e deitou-a na enorme cabaça.
– Agora vão todos dormir... – pediu Ynari.
No dia seguinte, quando acordaram, ainda
saía fumo da cabaça enorme, e em cima dela estavam muitos passarinhos de muitas
cores a cantar. O mais-velho da aldeia desatou a dançar alegremente porque
podia ouvir os passarinhos.
Ele quis saber onde estava a menina das
cinco tranças, mas ela já não estava na aldeia, e já não tinha cinco tranças...
A menina das quatro tranças caminhava com
o homem pequeno em direcção à segunda aldeia, que era a aldeia dos que não
podiam dizer palavras. Também nesta aldeia se comunicava com gestos, e assim
Ynari percebeu que estas pessoas não conseguiam falar. Mas Ynari tinha
aprendido muitos gestos na aldeia anterior e não teve dificuldade em entender
as pessoas.
Assim, mais uma vez por gestos, começou a
falar:
– Chamo-me Ynari e venho ensinar o
significado da palavra «FALAR»...
– Pois... – lamentou-se, por gestos, o
mais-velho daquela aldeia. – Nós não conseguimos «FALAR », e por isso andamos em guerra com
outra aldeia.
– Já entendi. Mas diz-me uma coisa...
– O que é? – perguntou o mais-velho.
– Se eu vos ensinar a «FALAR»,
vocês deixam de estar em guerra?
– Sim. Nós só queremos conseguir «FALAR».
– Muito bem. Então peço-te que juntes
todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu
vou ensinar-vos a «FALAR».
– Entendi, mas diz-me uma coisa –
gesticulou o mais-velho.
– O que é? – perguntou Ynari.
– Porque usas quatro tranças?
– Porque já só preciso de quatro tranças
para usar a palavra «PAZ» – sorriu
a menina das quatro tranças.
– Ah sim? Então mostra-nos como é.
– Hoje à noite mostro... – disse Ynari,
enquanto piscava o olho ao homem pequeno que estava de mãos dadas com ela.
Assim foi.
Como já tinha acontecido na outra aldeia,
todos trouxeram na mão um pouco de água do rio, todos estiveram junto à
fogueira vendo Ynari murmurar as palavras estranhas, a palavra «PERMUTA»,
e vendo também a sua quarta trança ser cortada. Depois Ynari pôs a trança
dentro da enorme cabaça e todos foram dormir.
Pela manhã, o mais-velho daquela aldeia
desatou aos gritos, imitando os passarinhos e os galos, muito contente porque
já conseguia «FALAR».
Entretanto, a menina das três tranças e o
homem pequeno já estavam a caminho de outra aldeia: a aldeia daqueles que não
viam o rio. Estes podiam «FALAR» e até «OUVIR», mas andavam na
guerra porque queriam «VER». O mais-velho explicou a Ynari que era muito
difícil estar na guerra sem ver nada, que morria muita gente por causa disso, e
Ynari explicou-lhe que a guerra era isso mesmo, uma cegueira que só trazia
mortes.
– Mas diz-me uma coisa...
– O que é? – perguntou o mais-velho.
– Se eu vos ensinar a «VER», vocês
deixam de estar em guerra?
– Sim. Nós só queremos saber «VER».
– Muito bem. Então peço-te que juntes
todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu
vou ensinar-vos a «VER».
– Entendi, mas diz-me uma coisa –
gesticulou o mais-velho.
– O que é? – perguntou Ynari.
– Por que usas três tranças?
– Porque já só preciso de três tranças
para usar a palavra «PAZ» – sorriu a menina.
– Ah sim? Então mostra-nos como é.
E mais uma vez se reuniu o povo, se
acendeu a fogueira com muito cuidado, e Ynari murmurou as suas palavras
estranhas, a palavra «PERMUTA», e cortou a terceira trança. Depois todos
se foram deitar.
No dia seguinte, o mais-velho da aldeia
desatou aos gritos logo muito cedo, pois tinha sido acordado pelos primeiros
raios de Sol. Todos alegres, foram olhar as coisas: o rio, os animais, a cor
das flores e do céu, e já não tinham nenhuma razão para usar a palavra «GUERRA».
Ainda mais para sul a menina e o homem pequeno
chegaram à aldeia dos que não sentiam o cheiro das flores. O mais-velho da
aldeia explicou a Ynari que eles nunca tinham sentido o cheiro das coisas, da
fruta, do peixe-seco, da fuba. E que estavam em guerra com outra aldeia para
que pudessem saber o significado da palavra «CHEIRAR».
– Mas diz-me uma coisa...
– O que é? – perguntou o mais-velho.
– Se eu vos ensinar a «CHEIRAR»,
vocês deixam de estar em guerra?
– Sim. Nós só queremos saber «CHEIRAR».
– Muito bem. Então peço-te que juntes
todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu
vou ensinar-vos a «CHEIRAR».
– Entendi, mas diz-me uma coisa – quis
saber o mais-velho.
– O que é? – perguntou Ynari.
– Porque usas duas tranças?
– Porque já só preciso de duas tranças
para usar a palavra «PAZ» – sorriu a menina.
– Ah sim? Então mostra-nos como é.
E foi o mesmo de sempre: cabaça enorme,
fogueira, todos de água na mão, e Ynari murmurando as palavras estranhas, a
palavra «PERMUTA», e cortando mais uma trança.
No dia seguinte, todos naquela aldeia
sentiram o cheiro das flores, muitos espirraram por causa do pó das asas das
borboletas, outros brincaram deitados no chão cheirando a relva ou pequenas
flores.
Ynari caminhava de mãos dadas com o homem
pequeno e chegaram à quinta aldeia. Nesta aldeia não sentiam o sabor dos
alimentos. Comiam de tudo, mas não conheciam a diferença entre o doce e o
salgado, entre a manga e o maboque, entre a cana-de-açúcar e o peixe-seco. E só
por isso andavam em guerra.
– Bom dia, mais-velho... – Ynari
cumprimentou.
– Bom dia, menina de uma trança só –
disse o mais-velho.
– Diz-me uma coisa: esta aldeia está em
guerra?
– Sim, estamos em guerra com outra aldeia.
– E porquê?
– Porque nos não sabemos o significado da
palavra «SABOR»! E nós também queremos experimentar o «SABOR» dos
alimentos – explicou o mais-velho.
– Já entendi... Mas diz-me uma coisa...
– O que é? – perguntou o mais-velho.
– Se eu vos ensinar a sentir o «SABOR»,
vocês deixam de estar em guerra?
– Sim. Nós só queremos saber usar a
palavra «SABOR».
– Muito bem. Então peço-te que juntes
todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu
vou ensinar-vos a palavra «SABOR».
– Mas diz-me uma coisa – quis saber o
mais-velho.
– O que é? – perguntou Ynari.
– Porque usas uma trança só?
– Porque já só preciso de uma trança para
usar a palavra «PAZ» – sorriu a menina.
– Ah sim? Então mostra-nos como é.
Era uma aldeia muito grande, e também foi
grande a fila que fizeram desde o rio até à cabaça enorme que estava em cima do
fogo.
Ynari, a menina que já só tinha uma
trança, murmurou as palavras estranhas, disse a palavra «PERMUTA», e
cortou a última trança que tinha. Depois falou para todos:
– Hoje usei a minha última trança. Amanhã
de manhã, já podem comer as frutas e todos os alimentos sabendo o significado
da palavra «SABOR». Queria pedir-vos uma coisa: deixem de usar a palavra
«GUERRA». Estive numa aldeia onde ninguém conhecia o significado da
palavra «VER», e andavam em guerra com outra aldeia pensando que isso
lhes ia ensinar a «VER». Mas não, a palavra «GUERRA» é parecida
com a palavra «DESAPARECER», que é parecida com as palavras «DEIXAR
DE VIVER». A partir de amanhã não procurem mais a palavra «GUERRA»
porque ela vai deixar de existir... – piscou o olho ao homem pequeno.
Na manhã seguinte, muito cedo, as pessoas
da aldeia foram comer, comeram muito, até de mais, porque queriam conhecer os
vários significados da palavra «SABOR», que era diferente se comessem
peixe ou carne, banana ou mandioca.
Caminhavam de novo junto ao rio. Ynari, a
menina sem tranças, e o homem pequeno voltaram a sentar-se no mesmo sítio de
sempre, onde pela primeira vez se tinham encontrado.
– Sabes, homem pequeno – começou a falar
Ynari. – Estou muito contente por ter descoberto a minha magia.
– Eu também estou contente por ti, Ynari.
– Agora quero pedir-te um favor.
– E qual é?
– Quando chegares à tua aldeia, vai falar
com a velha muito velha que destrói as palavras e diz-lhe que eu mandei por ti
uma palavra para ela destruir...
– Queres que ela destrua a palavra «GUERRA»?
– Sim. Explica-lhe o que vimos e o que
ouvimos. Acho que é uma palavra que ela vai querer destruir.
– Está bem, vou dar o teu recado.
– Olha, tenho que ir. Na minha aldeia já
devem estar preocupados. Desta vez demorámos mesmo muito tempo – sorriu a
menina sem tranças.
– Está bem – concordou o homem pequeno.
– Acho que está na hora de usarmos a
palavra «DESPEDIDA»...
– Também acho.
– Sabes uma coisa, homem pequeno?
– O que é, Ynari?
– Para mim, a palavra «DESPEDIDA»
tem muito da palavra «ENCONTRO» e um bocadinho também da palavra «SAUDADE».
– Explica-me – disse o homem pequeno
enquanto se levantava.
– Não sei explicar muito bem... Mas, desde
a primeira vez que te vi, eu senti uma coisa no meu coração...
– No teu coração?
– Sim, cá dentro, neste coração que é
pequenino e que é tão grande... Eu vou contar-te um segredo.
– Conta.
– Mas não digas nada ao velho muito velho
que inventa as palavras.
– Está bem – sorriu o homem pequeno.
– Eu acho que o meu coração também
inventa palavras... No dia em que te vi, logo, logo, o meu coração inventou
para nós a palavra «AMIZADE».
– Eu sei, Ynari, eu também senti o mesmo.
– A sério?
– Sim – disse o homem pequeno. – Agora já
sabes...
– Já sei o quê? – perguntou Ynari, a
menina sem tranças.
– Assim como há um velho muito velho que
inventa as palavras, também o nosso coração, quando precisa, sabe inventar
palavras.
Ynari levantou-se. Já tinham usado a
palavra «DESPEDIDA», agora estavam a usar as palavras «OLHAR PARA O
OUTRO». Estiveram assim algum tempo.
– Quando é que nos voltamos a ver? –
perguntou Ynari.
– Sempre que quisermos.
– Mas tu vives tão longe...
– Há muitas maneiras de se ir muito longe
– disse o homem pequeno.
– Diz-me uma.
– Tu sabes...
– Achas que posso apanhar boleia do
humbi-humbi?
– É uma ideia, ele é rápido.
– Mas eu sou tão pesada para ele...
– Mas não és pesada para o coração dele –
sorriu o homem pequeno.
– Experimenta viajar no coração do
humbi-humbi...
– Está bem, está bem – começou a correr
Ynari. – Adeus, até qualquer dia!
– Adeus. Estamos juntos. Eu também sei
viajar no coração do humbi-humbi.
– Eu sei – disse Ynari. – Agora já sei!
E, como dizem os mais-velhos, foi assim
que aconteceu.
Ondjaki [1]
Ynari a menina das cinco
tranças
Lisboa, Ed. Caminho, 2004
Adaptação
[1] Ondjaki
nasceu em Luanda, em 1977. Prosador e poeta, também escreve para cinema e
co-realizou um documentário sobre a cidade de Luanda (“Oxalá cresçam pitangas –
histórias de Luanda”, 2006). É membro da União dos Escritores Angolanos e da
Associação Protectora do Anonimato dos Gambuzinos. Está traduzido para francês,
espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco, polaco.
http://www.kazukuta.com/ondjaki/ondjaki.html
tags: paz/guerra
FONTE: Texto extraído da
internet, capturado em outubro de 2010.