quinta-feira, 11 de julho de 2013

A FADA ORIANA - I. FADAS BOAS E FADAS MÁS

Há alguns anos encontrei essa história na internet, em uma página de Portugal. Achei-a linda e com muito cuidado fui digitalizando-a. Depois guardei-a  em uma arquivo e não lembrava onde estava. Hoje a encontrei e achei que deveria postá-la. Trata-se de uma história que passa para todos uma linda mensagem. 
É um texto de Sophia de Melo Breyner Andersen. Vale a pena dividir com vocês. Boa leitura!

Regina de Macedo

A Fada Oriana
(Sophia de Melo Breyner Andersen.)

I.    Fadas Boas e Fadas Más
Há duas espécies de fadas: as fadas boas e as fadas más. As fadas boas fazem coisas boas e as fadas más fazem coisas más.
As fadas boas regam as flores com orvalho, acendem o lume dos velhos, seguram pelo bibe as crianças que vão cair ao rio, encantam os jardins, dançam no ar, inventam sonhos, e à noite põem moedas de ouro dentro dos sapatos dos pobres.
As fadas más fazem secar as fontes, apagam a fogueira dos pastores, rasgam a roupa que está ao sol a secar, desencantam os jardins, arreliam as crianças, atormentam os animais e roubam dinheiro aos pobres.
Quando uma fada boa vê uma árvore morta, com os ramos secos e sem folhas toca-lhe com a sua varinha de condão e no mesmo instante a árvore cobre-se de folhas, de flores, de frutos e de pássaros a cantar.

Quando uma fada má vê uma árvore cheia de folhas, de flores e de pássaros a cantar, toca-lhe com a sua varinha mágica do mau fado e no mesmo instante um vento gelado arranca as folhas, os frutos apodrecem, as flores murcham e os pássaros caem mortos no chão.

A FADA ORIANA - II. ORIANA

II. ORIANA                          

Era uma vez uma fada chamada Oriana.
Era uma fada boa e era muito bonita. Vivia livre, alegre e feliz dançando nos campos, nos montes, nos bosques, nos jardins e nas praias.
Um dia a Rainha das Fadas chamou-a e disse-lhe:
- Oriana, vem comigo.
E voaram as duas por cima de planícies, lagos e montanhas. Até que chegaram a um país onde havia uma grande floresta.
- Oriana – disse a Rainha das Fadas – entrego-te esta floresta. Todos os homens, animais e plantas que aqui vivem, de hoje em diante ficam à tua guarda. Tu és a fada desta floresta. Promete-me que nunca a hás-de abandonar.
Oriana disse:
- Prometo.
E daí em diante Oriana ficou a morar na floresta. De noite dormia dentro do tronco dum carvalho. De manhã acordava muito cedo, acordava ainda antes das flores e dos pássaros. O seu relógio era o primeiro raio de Sol. Porque tinha muito que fazer. Na floresta todas precisavam dela. Era ela que prevenia os coelhos e os veados da chegada dos caçadores. Era ela que regava as flores com orvalho. Era ela que tomava conta dos onze filhos do moleiro. Era ela que libertava os pássaros que tinham nos alçapões.

À noite, quando todos dormiam, Oriana ia para os prados dançar com as outras fadas. Ou então voava sozinha por cima da floresta e, abrindo as suas asas, ficava parada, suspensa no ar entra a terra e o céu. À roda da floresta haviam campos e montanhas adormecidas e cheios de silêncio. Ao longe viam-se as luzes de uma cidade debruçada sobre o seu rio. De dia e vista de perto a cidade era escura, feia e triste. Mas à noite a cidade brilhava cheia de luzes verdes, roxas, amarelas, azuis, vermelhas e lilases, como se nela houvesse uma festa. Parecia feitas de opalas, de rubis, de brilhantes, de esmeraldas e de safiras.

A FADA ORIANA - III. A VELHA

III. A VELHA

Passou o verão, passou o outono, passou o inverno. E chegou a primavera. E certa manhã de abril, Oriana acordou ainda mais cedo do que era costume. Mal o primeiro raio de sol entrou na floresta ela saiu de dentro do tronco de carvalho onde dormia, respirou fundo os perfumes da madrugada e fez os passos de dança. Depois penteou os cabelos com os dedos das mãos  a fizerem de pente e lavou a cara com orvalho
- Que manhã tão bonita! - Disse ela
- Nunca vi uma manhã tão azul, tão verde, tão fresca e tão doirada...! E foi pela floresta dançando e dizendo bom dia às coisas. Primeiro acordaram as árvores; depois os galos, depois os pássaros, depois as flores, depois os coelhos, depois os veados e as raposas. A seguir começaram a acordar os homens. Então Oriana foi visitar a Velha.
Era uma velha muito velha que vivia numa casa velhíssima e dentro da casa só havia trapos, moveis partidos e louças rachadas.
Oriana espreitou pela janela que não tinha vidros. A velha estava a arrumar a casa e, enquanto trabalhava, falava sozinha dizendo:
- Que negra vida! Que negra vida! Estou tão velha que mal tenho forças e ainda preciso trabalhar. E não tenho filhos e nem filhas que me ajudem... Se não fossem as fadas... que seria de mim? Quando eu era pequena brincava na floresta e os animais, as folhas e as flores brincavam comigo a minha mãe penteava os meus cabelos e punha uma fita a enlaçar o meu vestido. Agora se não fossem as fadas, que seria de mim?
Quando eu era nova ria o dia todo... Nos bailes  dançava sempre, sem parar tinha muito mais que cem amigos, agora que sou velha, não tenho ninguém. Se não fossem as fadas que seria de mim?
Quando eu era nova tinha namorados que me diziam que eu era linda... e me atiravam cravos quando eu passava. Agora os garotos correm atrás de mim... chama-me de velha... Velha! E atiram-me pedras... Se não fossem as fadas, que seria de mim?
Quando eu era nova tinha um palácio, vestidos de seda, aios e lacaios. Agora estou velha... Não tenho nada... Se não fossem as fadas, que seria de mim?
Oriana ouvia esta lamentação todas as manhãs e todas as manhãs ficava triste; cheia de pena da velha tão curvada, tão enrugada e tão sozinha que passava os dias inteiros a resmungar e a suspirar.
As fadas só conseguem se mostrar às crianças, aos animais, às árvores e as flores; por isso a velha nunca via Oriana; mas embora não a visse, sabia que ela estava ali. Pronta a ajudá-la.
Depois de ter varrido a casa, a velha acendeu o lume e pois água a ferver. Abriu a lata de café e disse:
- Não tenho café!
Oriana tocou com sua varinha de condão na lata e a lata encheu-se de café. A velha fez o café e depois olhou na caneca de leite e disse:
- Não tenho leite...
Oriana tocou com a sua varinha de condão na caneca e a caneca encheu-se de leite. A velha olhou pegou no açucareiro e disse:
- Não tenho açúcar...
Oriana tocou com a sua varinha de condão no açucareiro e o açucareiro encheu-se de açúcar.
A velha abriu a gaveta do pão e disse;
- Não tenho pão...
Oriana tocou com a varinha de condão na gaveta e dentro da gaveta apareceu um pão com manteiga. A velha pegou no pão e disse:
- Se não fossem as fadas, que seria de mim?
E Oriana  ouvindo-a,  sorriu. A velha comeu, bebeu e no fim suspirou:
- Agora, tenho de ir ao meu trabalho.
O trabalho da velha era apanhar ramos secos que depois ia vender à cidade.    E todas as manhãs Oriana a ajudava a apanhar os ramos e todas as manhãs a guiava até a cidade, pois a velha via muito mal o caminho que ia da floresta até pra cidade. Passava ao lado de grandes abismos onde a velha poderia cair se a fada não a guiasse. E assim nessa manhã de abril, Oriana  e a velha foram as duas pela estrada a fora. A velha toda curvada encostada a um pau e Oriana voando no ar como uma borboleta. E sem que a velha a visse a fada segurava o feixe de lenha para que ele pesasse menos sobre as costas dobradas.
Quando chegaram à cidade a velha foi de porta em porta vender a lenha e Oriana voou por cima de um teatro onde sentou a ver a cidade à espera da sua amiga. Enquanto esperava,começou a conversar com as andorinhas:
- Os países distantes são maravilhosos - Diziam as andorinhas.
- Contem, Contem - Pediu Oriana.
- O rei do Sião tem um palácio com o telhado de ouro; e na China há torres de porcelana. - Disse uma andorinha.
- Na Oceania há ilhas de coral cobertas de relva e palmeiras. E nessas ilhas as pessoas se vestem com flores e são todas bonitas, boas e felizes. - Disse outra andorinha
- Os cangurus têm uma algibeira para guardar os filhos e o rei do Tibete sabe ler o pensamento de todos os homens. - Disse outra andorinha.
- No alto das montanhas dos Andes há cidades abandonadas onde  só vivem arrias e serpentes - Disse outra andorinha
- Que maravilha! Contem, Contem tudo! - Pediu Oriana
- Não se pode contar tudo.- Responderam as andorinhas - As maravilhas do mundo são tantas... tantas... mas vem conosco Oriana. Quando vier o outono nós partimos. Tu também tens duas asas, vem conosco!
Mas Oriana olhou o vasto do céu tonto e transparente, suspirou e respondeu:
- Não posso ir... Os homens, os animais e as plantas da floresta precisam de mim.
- Mas tu tens duas asas Oriana, podes voar por cima dos oceanos e das montanhas. Podes ir ao outro lado do mundo. Há sempre mais e mais espaço. Imaginas como seria bom se viesses. Podias voar muito alto por cima das nuvens ou podias voar rente ao mar azul mergulhando a ponta de teus pés na água fria das ondas. E podias voar por cima das florestas virgens e  respirar o perfume das flores e dos frutos desconhecidos. Virias estirados os montes, os rios, os desertos e os oásis. No meio dos oceanos há ilhas pequeninas com praias de areia branca e fina. Ali, nas noites de luar tudo fica azul parado e prateado. Imagina essas coisas Oriana...
Mas Oriana olhando o alto do céu e as nuvens vagabundas, suspirou e disse:
- Imagina o que seria da velha sem mim... Quando ela acordasse em uma manhã fria de inverno e não encontrasse nem o pão e nem o leite?!
- Vem conosco Oriana! - Tornaram a pedir as andorinhas.
- Eu prometi tomar conta da floresta - Respondeu a fada. - E uma promessa é uma coisa muito importante...
Então as andorinhas fitaram-na com os olhos duros pretos e brilhantes e com ar severo disseram:
- Oriana, não mereces ter asas! Tu não amas o espaço e desprezas a liberdade!
Oriana abaixou a cabeça e respondeu:
- Eu fiz uma promessa!
As andorinhas viraram-lhe as costas e não fizeram mais caso dela.

Mal a velha acabou de vender sua lenha saiu da cidade acompanhada da fada e voltaram as duas para a floresta. Quando lá chegaram era quase meio dia. Oriana separou-se da velha e foi à casa do lenhador.

A FADA ORIANA - IV. O LENHADOR

IV. O LENHADOR

O lenhador era muito pobre. Na sua casa só havia uma cama, uma lareira, uma mesa e três bancos. A porta estava aberta porque não havia ali nada que valesse a pena roubar. Oriana, antes de entrar apanhou do chão três pedrinhas brancas. A casa estava arrumada, porque a mulher do lenhador gostava de fazer tudo bem feito. Por isso havia ali muito pouco o que arrumar. Oriana deu a volta à casa para ver o que faltava. Abriu a gaveta do pão e viu que ainda havia pão; por isso tornou a fechá-la. Depois abriu a gaveta da roupa. A roupa que era pouca e pobre, estava toda limpa e cosida. Mas havia uma blusa, tão velha e com tantos buracos que mesmo depois de cosida estava rota.
Oriana pôs uma pedrinha branca dentro da gaveta, tocou-lhe com a sua varinha de condão e a pedrinha transformou-se em uma blusa nova. A seguir, Oriana abriu a caixa do dinheiro e viu que estava vazia. Pois lá dentro uma pedrinha branca e transformou-a numa moeda nova muito redonda. E embaixo da mesa estava a bola do filho do lenhador. Oriana pegou-lha e viu que estava toda estragada. Então pôs debaixo da mesa a última pedrinha branca e transformou-a em uma bola nova. E quase todos os dias Oriana ia à casa do lenhador. Levava sempre três pedrinhas brancas e transformava-as nas coisas que faziam mais falta. E a mulher do lenhador dizia ao marido:

- Quem será essa pessoa tão boa que vem a nossa casa quando vou a sair e me traz as coisas que preciso?  

A FADA ORIANA - V O MOLEIRO

V. O MOLEIRO

Oriana saiu da casa do lenhador e pensou:
- Hoje é dia de feira. O moleiro foi à cidade vender a farinha. A mulher foi com ele e levou os onze filhos. Vou a casa dele ver o que lá falta.
E foi a casa do moleiro. A porta estava fecha a chave. Mas Oriana tocou na fechadura com a varinha de condão e a porta abriu-se. A casa estava toda desarrumada. Estava tudo de pernas para o ar e tudo estava coberto de farinha. Estava tudo fora do lugar porque a mulher do moleiro tinha onze filhos e era muito desordenada e distraída e nunca tinha tempo para nada. Não fosse Oriana não se poderia viver naquela casa.
Oriana entrou e olhou a sua volta. Suspirou ao ver tanta desordem. Depois foi buscar uma vassoura e um espanador e varreu e limpou a casa toda. Com a sua varinha de condão colou as coisas partidas. Lavou a louça e arrumou-as nos armários. Escovou os sapatos e pendurou-os. Coseu toda a roupa de dentro do cesto, encontrou e arrumou os brinquedos perdidos. Quando acabou de fazer tudo isto olhou a sua volta. A casa estava linda! Cheia de ordem e de limpeza. Então Oriana sorriu e foi-se embora.

E quase todos os dias Oriana arrumava a casa do moleiro. Mas a moleira nunca percebia que ali havia estado uma fada. Porque sempre saia de casa atrasada e a correr e como era muito distraída não reparava que deixava tudo desarrumado e de pernas para o ar. E quando chegava a casa não se espantava em nada ao encontrar tudo em ordem porque não se lembrava que tinha deixado tudo fora de ordem. Oriana saiu da casa do moleiro e foi a casa de um homem muito rico.

A FADA ORIANA - VI. O HOMEM MUITO RICO

VI. O Homem Muito Rico

O Homem muito rico não tinha nem mulher, nem filhos e nem amigos. Só tinha criados. A casa dele ficava em meio a um jardim muito bem tratado: Relva, arbustos, flores  e ruas de  areia. Oriana deu a volta a casa para ver por onde havia de entrar. As portas estavam todas fechadas a chave e Oriana não as podiam abrir. Porque na casa do homem muito rico as fechaduras eram tão caras que nem uma varinha de condão as podia abrir.
Mas havia uma janela aberta. Era a janela da sala. Oriana espreitou e viu que na sala não estava pessoa nenhuma. Só lá estavam as coisas. Mas reinava uma atmosfera de grande má disposição. Os sofás e as cadeiras davam cotoveladas uns aos outros. As cômodas davam coices nas paredes. As jarras diziam as caixas e aos cinzeiros que não as apertassem. E as flores diziam:
- Não posso mais, não posso mais... Falta-me o ar...!
A sala estava cheia como um ovo. Oriana entrou e as coisas puseram-se a falar ao mesmo tempo:
- Oriana, Oriana! Tire-nos daqui!- Gritavam as flores.
- Oriana, diz a jarra que não me empurre! - pediu a caixa.
- Oriana, diz a mesa que não pise com tanta força! - pediu o tapete.
- Oriana, diz ao sofá que não me dê cotoveladas! - pediu a cadeira.
- Oriana, diz ao biombo que chegue para lá! - Pediu a parede.
- Oriana! - Pediu o espelho - tire-me daqui! Estou sempre a ver, vejo tudo... Esta sala está cheia coisas! Esta sala sem espaços, sem vazios... Sem largueza... Que assim magoa os meus olhos de vidro...!
- Sosseguem, acalmem-se; não falem todos ao mesmo tempo. - Pediu a fada.
Então as coisas calaram-se todas e depois a mesa disse;
- Oriana, não podemos estar aqui! Não cabemos nesta sala!  Nesta sala há coisas demais. Estamos todos apertadíssimos... E somos coisas com feitios diferentes e não nos entendemos muito bem. Eu sou uma mesa antiquíssima. Estava na sala de jantar de um convento... Eu sou comprida, mas a sala de lá era grande e eu cabia lá bem porque, além de mim, Só lá estavam os bancos. E aqui me sinto muito mal. As coisas estão sempre a dar-me encontrões... há uma grande imbirração entre mim e o sofá dourado: Eu sou toda lisa e ele é todo feito de torcidos. Não nos podemos entender. Eu sou uma mesa de convento, fiz votos de pobreza... Não posso viver nesta sala! Oriana, toca-me com a tua varinha de condão e faz-me ir pelos ares para ver o meu convento.
Depois falou a cômoda:
- Eu sou uma cômoda, muito bonita e muito antiga. Durante dois séculos morei no solar de uma quinta. Estava em uma sala muito grande e quem entrava via logo que eu era muito bonita... Durante o dia eu ouvia as vozes das crianças rindo no jardim e as ouvia a correr umas atrás das outras  pelo corredor. A noite ouvia só o cantar do vento, das rãs e o correr da fonte no jardim. Nos dias de festa acendiam-se muitas luzes no jardim. As pessoas passavam ao meu lado e diziam: “Ó, que cômoda tão bonita”!  E o dono da casa respondia: “Foi meu pai quem mandou fazer”. E daí a outras dezenas de anos, havia outro dono da casa que respondia: “Foi o meu avô quem mandou fazer”. Passaram-se mais dezenas de anos e outro dono da casa que respondia: “foi meu bisavô que a mandou fazer”. Tornaram-se a passar mais dezenas de anos e vinha um outro dono da casa que respondia: foi meu trisavô quem mandou fazer. Porque eu ia de geração em geração e conhecia os pais, os filhos, os netos e os netos dos netos. Eu era uma pessoa da família. Quando fui vendida todos choraram. As lágrimas das árvores caiam gota a gota no chão e as suas folhas faziam-me sinais de adeus. Aqui é diferente. Quando alguém de fora diz que sou bonita, o dono da casa diz; Comprei-a por cem contos. Oriana, leva-me daqui! Leva-me outra vez para a sala do solar da quinta!
Depois falou o espelho:
- Eu estava num palácio e em frente de mim havia  espaço, espaço e espaço. E o chão era de mármore  liso e brilhante. E eu estava no fundo de uma galeria silenciosa e solitária. E  contemplava o mudar das horas do dia. Vi os reis e as rainhas pálidos no dia da coroação, com suas coroas cintilantes e pesadas. Vi os ministros, os conselheiros, e os homens importantes com seu nariz comprido, a sua cara de caso e o seu ar solicito. E vi as namoradas de vestido branco que nas noites de bailes fugiam um instante para a galeria solitária. Elas deslizavam rápidas e leves negando sempre a flor que lhes pediam. E vi as multidões das revoluções que passavam, desesperadamente, partindo tudo, à procura de justiça. Vi, vi, vi.
Eu sou um espelho; passei toda a minha vida a ver. As imagens entraram todas dentro de mim. Vi, vi, vi. E agora estou nesta sala onde não há um lugar onde os meus olhos de vidro descansem. Oriana, tira-me daqui e põe-me em frente de uma parede branca, nua e lisa.
E por uma todas as coisas foram pedindo que as levasse para outro sitio.
- Minhas queridas coisas - disse Oriana -, eu não poso fazer o que me pedem. Se eu as fizesse desaparecer daqui, o dono da casa teria um grande desgosto. E eu não posso entrar numa casa para dar desgosto ao seu dono.
- Então, o que se há de fazer? - Perguntaram as coisas.
- Nada - disse Oriana. - nesta sala tudo tem um ar irremediável. Quando entro nas outras casas, faço aparecer as coisas que faltam. Mas aqui não falta nada. Aqui está tudo a mais. Era preciso tirar coisas. Mas eu não posso entrar em uma casa e tirar o que lá está.
- Então, se não podes tirar daqui faz crescer a sala para nós cabermos.
- Tenho muita pena - disse Oriana - mas é impossível. Quando o dono desta casa a mandou fazer disse ao arquiteto: “Faça-me uma casa pequena, por causa das invejas”.
As coisas calaram-se um instante, pensaram e disseram:
- Oriana, convence o dono da casa a dar-nos de presente a alguém que não tenha móveis.
- Isso! - disse Oriana - é uma ótima idéia. Já sei o que vou fazer.
Em cima da mesa estava um bloco de papel e uma caneta. Oriana pegou na caneta e escreveu:
“Quem dá aos pobres empresta a Deus. Dá metade dos teus móveis aos pobres”.
- ótimo! – Disseram as coisas.
- Oriana - disse o espelho - peço-te que tires da minha frente aquela bailarina de Saxe. Estou farto de a ver o dia inteiro  sempre com o pé no ar em posição de desequilíbrio. Os meus olhos de vidro não têm pálpebras. Só as noites são as minhas pálpebras. Mas durante o dia nunca posso fechar os olhos. E estou cansadíssimo de passar os dias a ver uma bailarina com o pé no ar.
A bailarina estava numa prateleira em frente do espelho. Oriana pegou nela e pô-la no outro lado da sala, em cima da cômoda, de maneira a que o espelho não a visse.    
- Obrigado - Disse o espelho.
Então ouviram-se passos no corredor e Oriana escondeu-se atrás do biombo.
A porta abriu-se e entrou o Homem Muito Rico. Mal entrou viu o bloco de papel que estava em cima da mesa. Leu o que lá estava escrito, ficou furioso porque era muito avarento, e exclamou:
- Que atrevimento!
Depois viu que a bailarina tinha sido mudada de sítio, ficou outra vez furiosos e exclamou:
- Oh!
Tocou a campainha e apareceu o mordomo.
- Chama imediatamente os criados todos - disse o Homem Muito Rico.
Daí a um instante entraram os criados todos. Puseram-se em fila em frente a porta. O Homem Muito Rico voltou-se para eles, virando as costas à mesa onde estava o papel e à cômoda onde estava a bailarina, e disse:
- passaram-se nesta casa duas coisas escandalosas. Ai de quem as fez! Quero que o culpado se acuse. Quero saber quem é que escreveu sentenças no papel e quem mudou a bailarina de sítio.
Os criados estavam assustadíssimos. Oriana, ouvindo este discurso, ficou muito aflita com o que tinha feito. Num abrir e fechar de olhos tocou a sua varinha de condão no bloco, fazendo desaparecer o que lá estava escrito e tocou na bailarina, fazendo-a voar para cima da prateleira.
O Homem Muito Rico pegou no bloco, virou-o para os criados e disse:
- Quem escreveu isto?
Os criados viram uma folha em branco e responderam:
- No bloco não está nada escrito.
O Homeme Muito Rico pensou que estava a sonhar. Não sabia o que havia de dizer, nem sabia que cena é que havia de fazer. Tossiu e disse com uma voz muito severa:
- Quem é que tirou a bailarina da prateleira?
Mas olhou para a prateleira e viu que a bailarina já lá estava outra vez. Pensou que estava doido. Ficou outra vez furioso  e muito envergonhado com a figura que estava a fazer. Não sabia o que havia de explicar aos criados. Tornou a tossir e disse:
- Eu estava a fazer uma experiência. Já se podem ir embora.
Os criados foram-se embora e o Homem Muito Rico sentou-se numa cadeira e começou a falar sozinho:
- Isto foi uma partida. Mas foi tão bem feita que eu não percebi nada. Foi com certeza a criada da sala. A estas horas estão todos na cozinha a rir-se de mim. Tenho que despedir a criada da sala.
Oriana estava aterrada.
- Que horrível! - Pensava ela - aqui tudo dá mau resultado. Não consegui ajudar ninguém.
Enquanto pensava isto espreitou por cima do biombo. O Homem Muito Rico estava sentado de costas para ela e Oriana viu que ele era careca como um ovo. Então ficou cheia de pena. Resolveu pôr-lhe cabelo. Tocou-lhe com sua varinha de condão na careca e imediatamente a careca se cobriu de milhares de cabelinhos muito curtos. O Homem Muito Rico sentiu uma comichão na cabeça. Foi ao espelho ver o que era. E viu que tinha a cabeça cheia de cabelo novo a nascer.
Primeiro não acreditou no que viu. Estava um instante de boca aberta, sem poder falar. Depois gritou:
- CABELO! CABELO!
Quando acabou de gritar, disse:
- Porque será que me nasceu cabelo? Há tantos anos que eu era careca e experimentei tantos remédios que nunca, até hoje, tinham dado resultado!
Ficou um instante calado e de repente bateu com a mão na testa, exclamou:
- Já sei, já descobri o que foi: Foi aquela viúva que me veio pedir emprego para o filho! Ela começou a falar da sua pobreza e eu comecei a falar da minha falta de cabelo. Ela disse:
- “Não tenho dinheiro nenhum”
E eu respondi:
- “Não tenho cabelo nenhum”!
E ela então disse-me que ia mandar um remédio que fazia crescer o cabelo. E no dia seguinte mandou-me um frasco com remédio dentro. Eu pus o remédio e nasceu o cabelo! Tenho de lhe agradecer! Tenho de lhe arranjar um emprego para o filho! Vai ser já!
E o homem muito rico, muito excitado, pegou no telefone e marcou um número.
Foi a viúva que veio ao telefone. Disseram-se bons dias e depois o Homem Muito Rico disse:
- Minha senhora, estou desvairado e louco de gratidão. Ajoelho-me aos seus pés e beijo as suas mãos. Imagine que já tenho cabelo! Se calhar até vou ter caracóis! E até me parece que o cabelo que me está a nascer é loiro. Os grandes ideais da minha vida foram sempre ser rico e ser loiro. Até aqui só tinha conseguido ser rico. Agora, graças a si, vou ser loiro! Loiro! Loiro! Quero-lhe agradecer. Quero falar com o seu filho!
O filho da viúva veio ao telefone e o Homem Muito Rico disse-lhe:
- Tenho um lugar para si! Um lugar magnífico, perfeito, ideal. Basta lá ir duas vezes por semana e ganhar trinta contos por mês. Não tem nada que fazer. É um lugar importantíssimo. Tinham-mo oferecido a mim, era para mim, mas agora é para si!
Ouvindo isto, Oriana pensou:
- Até que enfim! Consegui fazer qualquer coisa nesta casa. Já me posso ir embora! Uf!

E saiu pela janela.

A FADA ORIANA - VII. O PEIXE

VII. O Peixe


Cá fora a tarde estava maravilhosa e fresca. A brisa dançava com as ervas dos campos. Ouviam-se pássaros a cantar. O ar parecia cheio de poeira de oiro.
Oriana foi pela floresta fora, correndo, dançando e voando, até chegar ao pé do rio. Era um rio pequenino e transparente, quase um regato; nas suas margens cresciam trevos, papoulas e margaridas. Oriana sentou-se entre as ervas e as flores a ver correr a água. De repente ouviu uma voz que a chamava:
- Oriana, Oriana.
A fada voltou-se e viu um peixe a saltar na areia.
- Salva-me, Oriana - gritava o peixe. - Dei um salto atrás de uma mosca e caí fora do rio.
Oriana agarrou no peixe e tornou a pô-lo na água.
- Obrigado, muito obrigado - disse o peixe, fazendo muitas mesuras. - Salvaste-me a vida e a vida de um peixe é uma vida deliciosa. Muito obrigado, Oriana. Se precisares de alguma coisa de mim lembra-te que eu estou sempre às tuas ordens.
- Obrigado - disse Oriana - agora não preciso de nada.
- Mas lembra-te da minha promessa. Nunca esquecerei que te devo a vida. Pede-me tudo o que quiseres. Sem ti eu morreria miseravelmente asfixiado entre os trevos e as margaridas.
A minha gratidão é eterna.
- Obrigada - disse a fada.
- Boa tarde, Oriana. Agora tenho de ir embora, mas quando quiseres vem ao rio e chama por mim.
E com muitas mesuras o peixe despediu-se da fada.
Oriana ficou a olhar para o peixe, muito divertida porque era um peixe muito pequenino, mas com um ar muito importante.
E quando assim estava a olhar para o peixe viu a sua cara reflectida na água. O reflexo subiu do do fundo do regato e veio ao seu encontro com um sorriso na boca encarnada. E Oriana viu os seus olhos azuis como safiras, os seus cabelos loiros como as searas, a sua pele branca como lírios e as suas asas cor do ar, claras e brilhantes.
- Mas que bonita que eu sou - disse ela. Sou linda. Nunca tinha pensado nisto. Nunca me tinha lembrado de me ver! Que grandes são os meus olhos, que fino que é o meu nariz, que doirados que são os meus cabelos! Os meus olhos brilham como estrelas azuis, o meu pescoço é alto e fino como uma torre. Que esquisita que a vida é! Se não fosse este peixe que saltou para fora da água para apanhar a mosca eu nunca me teria visto. As árvores, os animais e as flores viam-me e sabiam como sou bonita. Só eu é que nunca me via!

Oriana estava maravilhada com a sua descoberta. Debruçada sobre a água, não se cansava de se ver. As horas passavam e ela continuava conversando com a sua imagem.

A FADA ORIANA - VIII. O POETA


VIII. O POETA

Até que o sol se pôs, veio a noite e o rio escureceu. Oriana deixou de ver o seu reflexo. Levantou-se e ficou algum tempo imóvel a cismar. Depois olhou à sua volta e disse:
- Chegou a noite! Como o tempo passou depressa!
Então lembrou-se de que era a hora de ir visitar o seu amigo Poeta. Porque a única pessoa crescida a quem Oriana podia aparecer era ao Poeta. Porque ele era diferente das outras pessoas crescidas.
O Poeta morava no fundo da floresta, numa torre muito alta e muito antiga, coberta de heras, de glicínias e de roseiras.
Oriana voou sobre as árvores através do primeiro azul da noite. A porta da torre estava aberta, mas Oriana entrou pela janela com a brisa. As rosas da trepadeira estremeceram e dançaram quando ela chegou.
- Hoje vens tarde – disse o Poeta.
- estive debruçada sobre o rio a ver o meu reflexo – respondeu Oriana. - Demorei-me porque fiquei encantada com a minha beleza.
- Oriana, – pediu o Poeta – encanta a noite.
Então Oriana tocou com a varinha de condão na noite e a noite ficou encantada.
E o Poeta disse-lhe:
- O que tu me trazes é muito mais que beleza. No mundo há muitas meninas bonitas. Mas só tu que podes encantar a noite porque és uma fada.
Então Oriana sentou-se na beira da janela e contou as histórias maravilhosas dos cavalos do vento, da caverna dos dois dragões e dos anéis de Saturno. O Poeta disse-lhe os seus versos, que eram claros e brilhantes como estrelas. Depois ficaram os dois calados enquanto a Lua subia no céu. Até que um sino trouxe de longe o som das doze badaladas da meia-noite e Oriana e o Poeta despediram-se.
No dia seguinte de manhã foi levar a velha à cidade. Mal voltou da cidade voou rapidamente para o rio. Ajoelhou-se na margem e inclinou-se sobre a água. O seu reflexo apareceu todo doirado de sol à tona do rio.
- Mas que bonita que eu sou! – disse Oriana. - Hoje ainda estou mais bonita do que ontem. Serei eu realmente tão bonita como me vejo na água?
Oriana olhou bem para os outros sítios do rio onde se refletiam as árvores. E pareceu-lhe que o reflexo das árvores no rio era mais bonito do que as próprias árvores.
- Se calhar – pensou ela – o meu reflexo é mais bonito do que eu! Como é que eu hei de saber a verdade?
Então lembrou-se do peixe e chamou-o:
- Peixe, peixe, peixe, meu amigo!
O peixe apareceu e disse:
- Bom dia, Oriana. Aqui estou.
- Peixe, – disse a fada – preciso de ti. Quero saber se o meu reflexo no rio é mais bonito do que eu.
- Nada no mundo é tão bonito quanto tu – disse o peixe.
- Tu és muito mais bonita do que o teu reflexo. Tens os olhos mais brilhantes, o cabelo mais doirado, a boca mais vermelha.
- Achas que sim?! - perguntou Oriana. E ficou a cismar.
De repente teve uma idéia: Lembrou-se do espelho. Pensou:
- Vou ver o que diz o espelho – disse.
- Até logo, peixe.
E, rápida como uma seta, dirigiu-se a casa do Homem Muito Rico.
A janela estava aberta e a sala estava vazia.
Oriana entrou, disse bom dia às coisas e pôs-se em frente do espelho:
- Espelho – disse ela – olha-me bem, mostra-me como eu sou: vi o meu reflexo no rio e achei-me linda. Mas tenho medo de que o rio me tenha embelezado e lisonjeado como lisonjeia a paisagem. Mostra-me bem como eu sou para ver se o peixe disse a verdade e se eu ainda sou mais bonita do que o meu reflexo no rio.
- Oriana – disse o espelho -, sou, como já sabes, um espelho antiqüíssimo. Há séculos que todas as meninas querem saber se haverá no mundo alguém mais bonito do que elas. Vê-te bem. És muito bonita, mas há uma coisa muito mais bonita do que tu.
- O que é? - Perguntou Oriana, ansiosamente.
- Uma parede branca, nua e lisa.
- Não me fales mais nessa parede – disse Oriana, desconsolada. Mas depois olhou-se muito no espelho e disse:
- Eu acho-me linda.
- Ainda bem – disse o espelho. - mas não imaginas a quantidade de meninas que pelos séculos fora se olharem nos meus olhos de vidro e disseram: “Acho-me linda”!
- Então, adeus – disse a fada, um pouco zangada.
- Não te vás já embora. Quero-te pedir uma coisa.
- O que é?
- Tira outra vez o cabelo do Homem Muito Rico.
- Mas porque é que eu hei de fazer essa maldade?
- Porque ele passa o dia em frente de mim, a ver-se em mim e a dizer: “É um cabelo lindo”. E eu já não o posso olhar.
- nesta casa – disse Oriana – tudo dá mau resultado.
E foi-se embora.
Cá fora pensou:
- Nunca mais volto a essa casa: o espelho fez troça de mim. Aqui nada há que falte e tudo é irremediável.
E foi outra vez para o rio.
Sentou-se a beira da água e apareceu o peixe:
- Peixe – disse Oriana –, vi-me no espelho do Homem Muito Rico, e achei-me muito bonita, tão bonita como neste reflexo do rio. Mas o espelho disse-me que havia uma parede branca que era ainda mais bonita do que eu.
- os espelhos são uns sonhadores, estão sempre a imaginar o que não vêem. És muito mais bonita do que uma parede. Eu nunca vi ninguém tão bonito quanto tu. Mas acho que é uma pena andares tão mal penteada.
- Ah?! – disse Oriana, inquieta.
- Tens de mudar de penteado – disse o peixe. – Eu ensino-te!
E o peixe começou a ensinar:
- Faz riscas ao lado, puxa os caracóis Mara trás, puxa a onda da direita mais para frente, põe a onda da esquerda mais para trás e faz caracóis na nuca.
Oriana fez tudo o que o peixe disse, mas ele ainda não ficou contente. Mandou-a desmanchar o que tinha feito e recomeçar tudo outra vez. Oriana fez e refez ondas e caracóis. Até que começou a escurecer.
- Agora está melhor – disse o peixe. – Mas amanhã vamos experimentar outro penteado.
- Então até amanhã – disse Oriana.
E foi lentamente, cismando, pela floresta fora.
Era quase noite quando chegou à torre do Poeta. Senyou-se na beira da janela e perguntou;
- Achas que estou diferente?
- Não – disse o Poeta. – Acho que estás igual.
- Mas mudei de penteado.
- Não tinha reparado.
Oriana ficou calada, desconsolada com a resposta. O poeta pediu-lhe:
- Oriana, enche o ar de música.
Oriana tocou com a sua varinha de condão no ar e o ar encheu-se de música.
Estava lua cheia e o luar inundava tudo. Cheirava a madressilva e a rosas.
- Oriana – pediu o Poeta –, dança a dança da noite de hoje.
Então Oriana começou a dançar no ar, em pontas dos pés, a “Dança da Noite de Luar da primavera”.
Dançava como as flores dançam no vento, e os braços eram iguais ao correr dos rios.
O Poeta sentou-se na beira da janela a vê-la e do fundo da floresta vieram veados, os coelhos, as aves e as borboletas, para verem a dança da fada.
Até que o vento trouxe de longe o som das doze badaladas da meia noite. Oriana despediu-se do Poeta e desapareceu.
No dia seguinte, de manhã, Oriana, depois de levar a velha à cidade, foi correr a ajoelhar-se em frente do rio. O Peixe já estava à sua espera. Começaram logo a ensaiar penteados. O peixe mandou-a fazer uma coroa de flores, para por na cabeça. Oriana passou a manhã e a tarde a colher flores, a ver-se no rio e a ouvir os elogios do peixe. Esqueceu-se de ir à casa do moleiro e à casa do lenhador. Esqueceu-se de tomar conta dos animais. Esqueceu-se de regar as flores. Mas a noite foi visitar o Poeta.
E, daí em diante, Oriana foi abandonando um por um todos os homens, animais e plantas que viviam na floresta. Um dia abandonou também o Poeta. Foi porque numa tarde o peixe lhe disse:
- Vista à luz do Sol és linda, mas de noite vista a luz de uma chama, deves ser ainda mais bonita.
E nessa noite Oriana, em vez de ir visitar o poeta, encheu a margem do rio com pirilampos e fogoa-fátuos e passou a noite a ver-se na água.  
  
Foi uma noite maravilhosa. Parecia uma festa extraordinária e fantástica no meio do silêncio e da escuridão da floresta. Os fogos–fátuos e pirilampos eram iguais a estrelas pequeninas e Oriana via-se na água rodeada de luzes, de chamas e de sombras, com os seus olhos brilhantes, os seus cabelos luminosos, a sua coroa de lírios e as suas asas transparentes. 
E daí em diante nunca mais foi ver o Poeta. Esqueceu-se de todos os seus amigos. A única pessoa que ela continuava a visitar era a velha, porque sentia imensa pena quando a ouvia dizer que em tempos idos tinha sido nova e linda e agora era velha, enrugada e feia. Por isso, todas as manhãs lhe acendia o lume, lhe punha leite na caneca, café na lata, açúcar no açucareiro, pão com manteiga na gaveta e depois a guiava ao longo do caminho da cidade, para que ela não caísse nos abismos.
Mas mal voltava da cidade com a velha ia rapidamente para o rio, mirar a sua beleza e ouvir os elogios do seu admirador peixe.
E, durante a primavera, Oriana enfeitou-se com coroas e colares feitos de madressilva, margaridas, narcisos, flor de laranjeira, papoulas.
Depois no verão, Oriana enfeitou-se com cravos, rosas e lírios. E no outono enfeitou-se com folhas vermelhas de vinha, com dálias e crisântemos.
Mas quando chegou o inverno só havia violetas. E ao fim de algum tempo o peixe disse;
- Eu acho que o roxo das violetas diz muito bem com o branco da tua pele e o loiro do teu cabelo. Em todo caso há já dias e dias que não mudas de enfeites. Acho que devias variar.
- Como é que eu hei de variar? – respondeu Oriana. – Agora é inverno e não há flores na floresta.
O peixe pensou um bocado e disse:
- podias enfeitar-te com pérolas?
- Mas onde é que eu hei de buscar pérolas?
- Espera um instante – pediu-lhe o peixe.
E passado algum tempo voltou com um anel que deu à fada.
- Toma este anel.
Oriana pegou no anel e ele disse-lhe
- Põe o anel no teu dedo e voa até o mar. E quando chegares à orla das ondas chama pelo peixe Salomão, mostra-lhe o anel e pede-lhe que te traga mil pérolas do mar do Oriente.
Oriana assim fez.
Voou sobre as ondas e chamou:
- Peixe, peixe, peixe Salomão!
E apareceu um peixe preto e azul com os olhos vermelhos, e perguntou:
- Quem me chama?
- Sou eu, a fada Oriana. Trago-te este anel.
- Diz o que queres.
- Quero que me tragas mil pérolas do mar do Oriente.
- Senta-te naquele rochedo – respondeu o peixe Salomão – e espera que eu volte.
Oriana sentou-se no rochedo e esperou sete dias e sete noites. De vez em quando lembrava-se da velha, mas pensava:
“Com certeza que o peixe Salomão não se há de demorar. Ela nem vai dar pela minha falta. Conhece tão bem o caminho que, com certeza, não há de cair no abismo”.
Depois da sétima noite, o peixe apareceu ao romper do dia. Trazia uma grande casca de tartaruga que tinha lá dentro as mil pérolas.
- Obrigada, peixe Salomão – disse a fada.
E pegando na casca de tartaruga, voltou para a floresta.

A FADA ORIANA - IX A RAINHA DAS FADAS

IX. A Rainha das Fadas

M
al chegou à beira do rio, Oriana chamou:
- Peixe, meu amigo, aqui estão as pérolas.
E o peixe trouxe do fundo do rio dez fios de prata e Oriana enfiou as pérolas e fez dez colares.
Enrolou um colar à volta do pescoço, enrolou um colar à volta de cada braço e entrelaçou em seus cabelos os outros sete colares. Depois debruçou-se nas águas. Era um dia de inverno muito luminoso e transparente. E Oriana viu seu reflexo mais claro e mais nítido do que nunca. E nunca se tinha achado tão bonita. O brilho redondo das pérolas rodeava o seu pescoço, refletia-se na sua pele, iluminava o seu cabelo.
- Nunca, nunca vi nada tão bonito! – exclamava ela.
- pareces a rainha do mar, a princesa da Lua, a deusa das pérolas – disse o peixe.
- Nunca mais me vou embora da margem do rio – disse Oriana. – Quero passar o resto da minha vida a olhar para mim.
Mas de repente Oriana calou-se. Porque ouviu no ar um silêncio. E nesse silêncio levantou-se uma voz, uma voz alta, direita e severa que chamou:
- Oriana!
Oriana estremeceu e voltou-se. Ao seu lado, no ar, estava a Rainha das Fadas.
E a voz alta, direita e severa tornou a falar:
- Oriana, o que é que estavas a fazer?
Oriana pálida respondeu:
- Estava a olhar para mim.
- E a tua promessa?
Oriana abaixou a cabeça e não respondeu.
- Oriana – disse a voz –, faltaste à tua promessa e abandonaste a floresta. Abandonaste os homens e os animais e as plantas. As crianças tiveram medo e tu não as consolaste, os pobres tiveram fome e tu não lhes deste comida, os pássaros caíram dos ninhos e tu não os apanhaste, o Poeta esperou por ti até às doze badaladas da meia noite e tu não apareceste. Abandonaste o lenhador, o moleiro, o Poeta. Por fim até abandonaste a velha. Não cumpriste a tua promessa. Durante uma Primavera, um Verão e um Outono passastes os dias e as noites debruçada sobre o rio, a ouvir os elogios de um peixe, apaixonada por ti. Por isso, Oriana, deixarás de ter asas e perderás a tua varinha de condão.
E, dizendo isto, a Rainha das Fadas fez, no ar, um gesto com a sua mão. E no mesmo instante, assim como as folhas das árvores no Outono caem dos ramos, assim Oriana viu as suas caírem dos seus ombros e ficarem de repente secas e mortas como dois papéis velhos. E o vento passou e levou-as pelo ar. Oriana correu atrás delas, mas já não podia voar e as asas desapareceram. E viu sua varinha de condão partir-se aos bocados e desfazer-se em poeira, que caiu no chão.
E Oriana quis apanhar a poeira, e ajoelhou-se no chão. Mas a poeira já estava misturada com a terra e as mãos de Oriana só conseguiram apanhar terra.
E a voz alta, direta e severa tornou a chamar:
- Oriana!
Oriana levantou-se e, com a cara coberta de lágrimas e as mãos cheias de terra, pediu à Rainha das Fadas:
- Dá-me outra vez as minhas asas! Dá-me outra vez a minha varinha de condão! Perdoa-me a minha vaidade. Eu sei que faltei a minha promessa, sei que abandonei os homens, os animais e as plantas da floresta. O peixe encheu-me de vaidade com seus elogios. Olhei tanto para mim que me esqueci de tudo. Mas dá-me outra vez as minhas asas. Eu quero voltar a ser como dantes. Quero voltar a ajudar os homens, os animais e as plantas. Mas sem varinha de condão e sem asas, eu não posso ser fada. Preciso da varinha de condão para poder ajudar os que precisam de mim.
Mas a voz alta, direita e severa da Rainha das fadas respondeu-lhe:
- Vai pela floresta fora e vê o mal que fizeste. Vê o que aconteceu aos homens, aos animais e às plantas que tu abandonaste. A olhar para ti esqueceste –te dos outros. Só tornarás a ter asas quando tiveres desfeito todo o mal que fizeste. Só tornarás a ter asas quando te esqueceres de ti a pensar nos outros.
E mal acabou de dizer estas palavras, a Rainha das Fadas desapareceu.
E Oriana ficou sozinha à beira do rio, com a cara cheia de lágrimas e as mãos cheias de terra.
E ajoelhou-se ao pé do rio para lavar as mãos. Mas quando viu na água a sua imagem sem as asas começou a soluçar e a dizer:
- Asas, asas ai minhas asas! Que feio que é uma fada sem asas! Que ridículo que é uma fada sem asas! Ninguém vai acreditar que sou uma fada. Vão julgar que sou só uma menina bonita, quero ser uma fada.
Oriana sentia-se muito triste e muito sozinha. Lembrou-se do peixe e pensou:
- Vou pedir ao peixe que me ajude. Ele é que teve culpa disto tudo.
E Pôs-se a chamar:
- Peixe, peixe, meu amigo!
Mas o peixe não apareceu.
Oriana tornou a chamar:
- Peixe, peixe, vem me consolar! Vem ver como estou triste, olha o que me aconteceu!
Mas o peixe não apareceu.
- Deve ter fugido para longe – pensou Oriana. – Vou esperar que ele volte.
E esperou, esperou sentada à beira do rio. Mas passaram muitas horas e o peixe não apareceu.
- Que mau amigo, – pensou Oriana – estou triste e ele não me vem consolar.
Então Oriana lembrou-se dos amigos antigos que ela tinha abandonado. E lembrou-se de que a Rainha das Fadas lhe dissera:
“Vai ver o que aconteceu aos homens, aos animais e às plantas que tu abandonaste”.

E, levantando-se, limpou as suas lágrimas e começou a percorrer a floresta.