XI. A Cidade
As ruas estavam cheias de gente e Oriana sentiu-se
muito perdida e muito tonta no meio de tantas casas, de tanto barulho, de tanta
agitação. Olhava por todos os lados à procura de alguém que a pudesse ajudar.
Mas só via desconhecidos, que passavam sem sequer a ver.
Resolveu perguntar ao sinaleiro:
- Diga-me, se faz favor, senhor sinaleiro
conhece um moleiro que veio da floresta e que tem onze filhos?
- Nesta cidade há um milhão de pessoas e eu
não conheço moleiros. Siga, siga, está a interromper o trânsito!
E Oriana seguiu, empurrada pela multidão.
Depois perguntou a um vendedor de jornais:
- Diga-me, se faz favor. Sabe onde vive um
moleiro que veio da floresta e que tem muitos filhos?
- Nesta cidade vive tanta, tanta gente! Como é que
eu hei-de saber onde vive o moleiro? Deixe-me passar!
Então Oriana entrou numa loja de chapéus e a dona
da loja veio ter com ela a correr.
Oriana perguntou:
- Conhece um moleiro que veio da floresta e
que tem onze filhos?
- Não, não conheço. Mas tenho aqui um chapéu
lindo que parece feito de propósito para si. Sente-se em frente do espelho e
vai ver como fica bonita.
Mas Oriana lembrou-se do peixe e saiu da loja a
correr. Depois viu um homem que estava sentado numa esplanada a beber cerveja e
perguntou-lhe:
- Conhece um moleiro que veio da floresta e
que tem muitos filhos?
- Não conheço nenhum moleiro, mas quero
conhecê-la a si, porque nunca aqui na cidade vi uma menina tão bonita.
Oriana tornou a lembrar-se dos elogios do peixe e
fugiu, espavorida.
E assim foi perguntando pelo moleiro a muita gente,
mas ninguém lhe dava resposta certa. Depois de ter percorrido muitas ruas
cheias de lojas, de carros e de homens, foi ter a um bairro muito pobre, do
outro lado da cidade. As ruas eram escuras e estreitas e sujas. Tão escuras,
tão estreitas, tão sujas, que o sol, quando ali chegava, empalidecia.
- Que sítio tão triste! - pensou Oriana.
E passou um gato.
- Olá, gato - disse Oriana. - Sabes onde é que
mora um moleiro que veio da floresta e que tem onze filhos?
- Sei - disse o gato. - Vem atrás de mim. Atravessaram
duas ruas e entraram no número 9537. Subiram até ao quarto andar e bateram à
porta.
A mulher do moleiro apareceu.
- Bom dia – disse Oriana. – Eu sou a fada
Oriana e vim da floresta à tua procura.
- Que coisa tão esquisita - disse a moleira. -
Onde é que estão as tuas asas?
Oriana contou-lhe a sua história e pediu-lhe que
voltasse para a floresta.
- Daqui em diante - disse ela - tornarei a
tomar conta dos teus filhos e a arrumar a tua casa.
Mas a mulher do moleiro não acreditava no que ela
dizia.
- Eu não acredito em fadas. Só acreditarei nas
tuas palavras e só irei de novo para a floresta se primeiro me trouxeres o meu
filho que se perdeu.
E, tendo dito isto, fechou a porta.
Oriana, muito triste, voltou-se para o gato e
disse:
- Ninguém acredita em mim. Estou tão, tão
cansada! Diz-me: sabes onde mora o lenhador que veio da floresta? Talvez ele
acredite em mim.
- Não, não sei – disse o gato.
E despediram-se.
Oriana foi outra vez sozinha pelas ruas fazendo
perguntas a que ninguém respondia.
Até que encontrou um cão vadio.
- Diz-me, cão, sabes onde mora o lenhador que
veio da floresta com a mulher e o filho?
- Sei – disse o cão. – Vem atrás de mim.
E Oriana seguiu o cão até que chegaram os dois a um
bairro miserável. As casas eram feitas de latas, as mulheres eram pálidas e
desgrenhadas, os homens tinham fatos rotos e caras por barbear.
As crianças brincavam na lama.
- É ali - disse o cão apontando para um
casebre meio desfeito.
Oriana espreitou para dentro do casebre.
A mulher do lenhador estava sentada no chão e tinha
o filho a dormir no colo. Estavam os dois tão pálidos e tão magros que Oriana
mal os reconheceu. Não havia nem cama, nem colchão, nem banco, nem móvel
nenhum. Havia só, a um canto, um monte de trapos.
Oriana sentiu os seus olhos encherem-se de
lágrimas. Sentiu um nó na garganta e um terrível peso sobre as suas costas. Era
como se tivesse umas asas de chumbo. E, chorando, falou assim à mulher do
lenhador:
- Eu sou a fada Oriana, que te abandonei. É
por minha culpa que tu és tão desgraçada. Perdoa-me o mal que eu te fiz e
ajuda-me a desfazê-lo.
- Que mal é que tu me fizeste? – perguntou a
mulher.
- Eu nunca te vi.
Oriana contou-lhe tudo. A mulher respondeu:
- Eu sempre pensei que na floresta devia haver
uma fada. Ai!, Porque é que nos abandonaste? Ouve a nossa história:
“Quando chegámos à cidade o meu marido arranjou um
emprego no cais. Mas o que ganhava era muito pouco. Alugámos um quarto, mas ao
fim de algum tempo não podíamos pagar a renda e o senhorio pôs-nos na rua e
ficou com os nossos móveis. Então viemos para este casebre, e com os nossos
trapos fizemos uma cama no chão. E veio o Inverno, e o vento e a chuva não nos
deixavam dormir. E nós púnhamos o corpo do nosso filho entre os nossos corpos
para que a chuva não o molhasse e o vento não o gelasse. E o Inverno continuou.
Um dia o nosso filho adoeceu, e não parava de
tossir. E durante a noite o calor do nosso corpo não chegava para o aquecer.
Veio o médico, deu-lhe um remédio e disse: “Ele precisa de dois cobertores bem
quentes.” E no dia seguinte, depois do trabalho, o meu marido foi pela cidade
pedir esmola de porta em porta. Mas só lhe deram seis moedas e ele precisava de
cinquenta para comprar os cobertores. E no dia seguinte ele passou perto duma
loja, onde estavam cobertores à venda. E ele era um homem bom e honrado, mas o
nosso filho estava a morrer de frio. Por isso roubou dois cobertores e fugiu.
Mas veio o dono da loja e chamou a Polícia e foram atrás dele. E gritavam:
- “Agarra que é ladrão!!! Ladrão! Ladrão!”
“E levaram-no preso e meteram-no na cadeia. E eu
fui à porta da cadeia pedir por ele, com o meu filho nos braços. Mas
mandaram-me embora e disseram-me que o pai do meu filho era ladrão. E agora eu
estou aqui sentada e não posso fazer nada, nada. Tu, que és uma fada, ajuda-nos.
- Que mau é o mal que eu fiz! – disse Oriana.
– Quando eu me debruçava sobre o rio via os meus cabelos, a minha cara, o meu
pescoço igual a uma torre branca e direita. E o mal que eu fazia parecia-me bom
e lindo. Mas agora eu vejo que o mal que eu fiz é casas vazias, lumes apagados,
fome, frio, lágrimas, prisões.
- Ajuda-me – pediu a mulher do lenhador.
- Volta comigo para a floresta – disse Oriana.
– Eu prometo que de hoje em diante nunca mais te abandonarei.
- Só vou contigo se primeiro fores à prisão
buscar o meu marido.
Sem ele não posso ir.
- Então espera por mim – disse Oriana. – Eu
vou buscar o teu marido.
E Oriana foi outra vez pela cidade fora. Andou,
andou, até que chegou à porta da prisão. Era uma porta triste, escura, cheia de
manchas de humidade.
- Bom dia – disse ela ao guarda. – É aqui que
está preso um lenhador que roubou dois cobertores de lã?
- É aqui – disse o guarda.
- Peço-te que o soltes. Ele é meu amigo e não
é um ladrão.
Eu sei que ele não é um ladrão.
- Roubou – disse o guarda. – Por isso é um
ladrão.
- Ele roubou porque o filho dele estava a
morrer de frio, por isso não é um ladrão.
- A lei diz que ele é um ladrão – respondeu o
guarda.
- Não quero que digas que ele é um ladrão –
disse Oriana.
- Estás a insultar a autoridade. Vou-te mandar
prender – disse o guarda.
E chamou:
- Venham cá dois guardas prender esta
rapariga.
Oriana, quando ouviu isto, fugiu a correr. E
ninguém a conseguiu agarrar, porque, embora ela já não tivesse asas, ainda era
uma fada e por isso corria muito mais depressa do que os homens.
E Oriana foi pela cidade fora. Ia tão aflita que
falava alto sozinha. E as pessoas riam-se, dizendo:
- É uma doida que vai a falar sozinha.
E Oriana fugia, envergonhada.
Mas havia outras pessoas que diziam:
- Ai que menina tão bonita! Nunca uma menina
tão bonita pisou as ruas desta cidade. Parece um lírio de Maio, parece uma
estrela.
E quando ouvia isto, Oriana fugia ainda mais,
porque se lembrava dos elogios do peixe.
Até que anoiteceu. Apagou-se a luz do Sol e
acenderam-se as luzes da cidade. Havia luzes azuis, luzes verdes, luzes
brancas, luzes amarelas, luzes roxas, luzes vermelhas. E o chão da cidade era
brilhante e preto.
Oriana pôs-se à procura do Poeta.
Procurou-o nas ruas, nas praças, nos jardins
públicos.
Procurou-o nos cafés, nas pastelarias, nas
esplanadas, nas tabernas. Procurou-o nos miradouros, nas paragens dos
eléctricos e nas saídas dos cinemas. Até que as luzes da cidade se foram
apagando uma por uma. E quando cantou o primeiro galo, de madrugada, só já
havia uma casa com luz.
- É ali - disse Oriana.
E caminhou para a luz. Foi ter a uma rua larga com
casas altas. Oriana já por ali tinha passado de tarde. Mas a essa hora a rua
estava cheia de gritos, de pessoas, de movimento, de barulho, de carros. Agora
estava tudo quieto e calado. As portas e as janelas estavam fechadas. Só havia
uma porta aberta, onde brilhava a luz que ela tinha visto.
Oriana espreitou e viu uma grande sala com muitas
mesas pequenas que tinham tampas de mármore brancas e frias. Era um café que de
dia estava cheio de gente. Agora não havia ali quase ninguém. Havia só um
criado com sono, encostado ao balcão, quatro homens escuros sentados à roda de
uma mesa, à direita da entrada, e, ao fundo, sozinho, sentado em frente de um
copo vazio, estava o Poeta. Oriana atravessou a sala em silêncio e sentou-se em
frente dele. O Poeta estava tão perdido nos seus pensamentos que nem a viu
chegar. Os seus olhos olhavam para longe e não viam. A fada tocou-lhe levemente
na mão, dizendo:
- Sou eu. Sou a fada Oriana. Voltei!
- Oriana – disse ele, rindo.
E ficou um momento calado. Mas depois o seu sorriso
desfez-se, a sua cara tornou-se triste e dura. E perguntou:
- Onde é que estão as tuas asas?
- Já não tenho asas - respondeu Oriana,
baixando a cabeça.
- Onde é que está a tua varinha de condão?
- Perdi-a - disse Oriana.
- Se és Oriana, encanta a noite.
- Não posso.
Então o Poeta disse-lhe, quase gritando:
- Não és Oriana. A tua cara é igual à cara da
fada Oriana, mas mentes porque não tens asas e não podes encantar a noite. Não
és Oriana. O Mundo está desencantado. Oriana vive na floresta com as árvores,
com o vento, com as flores. Aqui não há
Oriana. Vai-te embora. Depressa.
Falava cada vez mais alto. As pessoas começavam a
olhar para eles. Oriana tapou a cara com as mãos. E o Poeta gritou:
- Desaparece!
Oriana levantou-se e, escondendo a cara, saiu a
correr do café.
Ouviu os criados e os quatro homens rirem quando
ela passava.
Fugiu pela rua fora e os risos e as troças corriam
atrás dela.
E Oriana voltou para a floresta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário