quinta-feira, 11 de julho de 2013

A FADA ORIANA - X. A FLORESTA ABANDONADA

X. A Floresta Abandonada

E
stava tudo muito quieto e muito calado. A floresta parecia despovoada. Não se ouvia pássaros. Não havia nenhuma flor. Mas havia muitos cogumelos venenosos. E Oriana chamou:
- Pássaros, esquilos, veados, corsas, coelhos, lebres!
Então ouviu um barulho no chão e, pequenina e preta, a víbora apareceu.
- Bom dia! – Disse a víbora.
- Bom dia, víbora – respondeu Oriana – onde estão os outros animais?
- Foram-se todos embora para os montes. Como a fada Oriana os abandonou e não tinha ninguém para os proteger dos tiros dos caçadores, eles tiveram que fugir para muito longe. Só ficaram os ratos, as víboras, as formigas, os mosquitos e as aranhas.
- Ah! – disse Oriana, corando de vergonha.
E perguntou:
- Sabes quem eu sou?
- Não. – disse a víbora. – vejo só que és uma menina muito bonita.
- Não sou uma menina bonita. Sou uma fada, sou a fada Oriana.
- Ah! Mas que esquisito! Onde é que estão as tuas asas? Nunca ninguém viu uma fada sem asas.
- Agora não tenho asas, mas daqui a dias vou voltar a tê-las. É uma história que não ti posso contar.
- Eu, como ando sempre metida debaixo da terra, nunca te tinha visto, mas já tinha ouvido falar de ti.
- Sim? O que disseram de mim?
- Contaram-me que dantes eras muito boa e tomavas conta da floresta, mas um dia abandonaste os teus amigos todos porque te apaixonaste por um peixe.
- Isso é mentira – disse Oriana furiosa. – Nunca me apaixonei pelo peixe. Que história tão estúpida!
- pois fica sabendo que é isso o que se diz. Até contam que tu passavas horas e horas debruçada sobre o rio a fazer penteados e a enfeitar-te com flores só para o peixe te dizer que estavas muito bonita.
- Mas eu nunca me apaixonei pelo peixe. Eu passava horas ao pé do rio porque gostava de me ver no rio.
- Talvez seja como dizes. Mas o peixe contou aos outros peixes, que contaram aos pássaros, que contaram aos coelhos, que contaram às víboras, que tu estavas louca de amor por ele e que só pensavas em te enfeitares para que ele te achasse bonita.
Oriana estava indignada. Sentia-se ridícula. Olhou para a víbora e lhe disse:
- Isso é uma mentira muito estúpida. Uma fada não pode se apaixonar por um peixe. Essa história é má-língua. É a célebre má-língua das víboras.
E, virando as costas, Oriana seguiu o seu caminho, mas enquanto se afastava ouviu o riso mau e sibilante da víbora:
- sssssssssssssss...
Ao fim de muito andar chegou à casa do moleiro. A porta estava aberta. Lá dentro estava tudo na maior desordem: as gavetas e os armários abertos e vazios, o chão e os móveis cobertos de poeira, e havia por todos os lados coisas partidas. A casa parecia ter sido abandonada há muito tempo. O lume estava apagado, os quartos cheios de teias de aranha. Oriana pegou numa vassoura e num trapo e começou a varrer e a limpar a casa. Então ouviu um ruído e uma voz que a chamou:
- Oriana!
Era um rato.
- Oriana, não vale a pena arrumar a casa. Já não vive aqui ninguém senão eu. O moleiro, a moleira e os seus filhos foram viver na cidade.
- Ah! Mas por quê? – perguntou Oriana.
- Um dia desapareceu um dos filhos mais novos, aquele que tem caracóis pretos e que tem quatro anos. O moleiro e a moleira procuraram-no durante nove dias pela floresta toda sem o encontrar, e ao fim de nove dias o moleiro disse:
- O nosso filho perdeu-se na floresta, ou foi comido pelos lobos, ou caiu no rio, que o levou afogado para longe. Não vale a pena procurá-lo mais. Vamo-nos embora da floresta antes que torne a acontecer outro desastre.
- Há muito tempo que eu sentia que ia acontecer uma coisa má – disse a moleira. – Ultimamente tudo me corria torto. Quando eu chegava a casa encontrava tudo desarrumado.
Os meus filhos estavam sempre a cair ao rio e voltavam sempre para casa sujos, rotos e cheios de feridas. Vamos depressa embora da floresta.
E depois desta conversa o moleiro e a mulher fizeram as malas e as trouxas, puseram tudo numa carroça e foram com os filhos para a cidade. Por isso não vale a pena arrumar a casa.
- Foi tudo por minha culpa, – suspirou Oriana – fui eu que os abandonei. Os filhos do moleiro caíram ao rio e voltavam para casa sujos, rotos  e feridos porque eu não tomava conta deles. Até que um se perdeu. Ai como é que eu hei de desfazer o mal que fiz?
E dizendo isto Oriana pôs-se a chorar ao pé do lume apagado.
- É uma grande tristeza – disse o rato – E foi realmente tua a culpa.
Oriana pegou na vassoura, dizendo:
- Apesar de tudo, vou acabar de arrumar e limpar a casa.
Quando chegou ao fim das limpezas, a fada despediu-se do rato e foi outra vez pela floresta fora. Pelo caminho havia pedras que lhe magoavam os pés e tojos e matos que picavam. Quando ela tinha asas, voava por cima dos cominhos maus e só pousava no chão os seus pés quando o chão estava coberto de musgo, de relva macia ou de areia fina.
“Que difícil que é a vida dos homens”, pensou ela. “Eles não têm asas para voar por cima das coisas más”. Andando, oriana chegou à cabana do lenhador. Também ali o lume estava apagado, o chão coberto de pó.
A cama, a mesa e os bancos tinham desaparecido. Então Oriana ajoelhou-se ao pé do lume apagado e chorou. E ouviu uma voz dizer:
- Oriana, que é feito das tuas asas?
Era uma formiga.
- A Rainha das Fadas tirou-me as minhas asas porque eu faltei à promessa que lhe fiz.
- Foi um castigo justo porque tu esqueceste e abandonaste os teus amigos. Vê o que aconteceu nesta cabana. O lenhador e a mulher eram muito pobres. Mas todas as manhãs tu aqui entravas com três pedrinhas brancas. E transformava as pedras em dinheiro, em roupa e em pão. Até que houve uma manhã em que tu não vieste. E daí em diante passou a haver fome, frio e meséria nesta cabana. E um dia o lenhador disse à mulher:
- “Não podemos continuar a viver com tanta miséria. Vamos para a cidade procurar trabalho”.
E fizeram uma trouxa com os seus trapos e pegaram nos móveis às costas e com o filho pela mão partiram para a cidade. Iam tristes e choraram muito quando se despediram desta cabana, onde eram felizes, no tempo em que tu todos os dias os visitavas com três pedras brancas.

- Ai, formiga – disse Oriana, soluçando –, como é que eu hei-de desfazer todo mal que fiz? Só agora é que eu compreendo como a floresta precisa de mim.

- Não sei que conselho te hei-de-dar – respondeu a formiga. – Mas já que estás arrependida de nos teres abandonado, já que queres voltar a ajudar os homens, os animais e as plantas, faz-me um favor.

- O que é? – perguntou Oriana, limpando as lágrimas.

- Pega numa pedra branca e transforma-a numa pedra de açúcar.

- Ai, formiga! – disse Oriana. – Já não tenho varinha de condão. Não posso fazer o que me pedes. Já não sirvo nem para ajudar uma formiga.

- Então se não me podes ajudar, adeus, Oriana. Tenho muito o que fazer.

E, com um ar muito atarefado, a formiga foi-se embora.

Oriana suspirou, levantou-se e saiu da cabana.

Cá fora já anoitecia. A fada pôs-se a caminho da torre do Poeta. A torre ficava longe e o caminho era selvagem, cheio de picos e de pedras. Oriana caminhava cortando a cada instante os seus pés. Não se ouvia cantar nenhum pássaro, não se via correr nenhum coelho, não se via aparecer nenhum veado com seu ar majestoso e os olhos humidos de doçura. Em toda a floresta pairava o silêncio, o abandono, a solidão. Quando Oriana chegou à torre, era já noite fechada. E ela levava os pés em sangue e o coração pesado.
A porta da torre estava aberta. Oriana entrou, subiu as escadas, pensando:
- O Poeta vai me consolar, vai-me dizer o que hei de fazer. Ele vai encostar a minha cabeça ao seu ombro para que eu possa chorar, chorar até que a minha solidão se desfaça.

Oriana abriu a porta do quarto do Poeta. E viu que o quarto estava vazio. Os papéis que dantes cobriam os móveis e o chão tinham desaparecido. Mas a lareira apagada estava cheia de cinza de papéis queimados. E o vento, que entrava pela janela, espalhava as cinzas. Estava tudo coberto de cinza.
Oriana atravessou o quarto e os seus pés feridos deixaram pegadas vermelhas de sangue sobre a cinza macia e branca. E ela ajoelhou-se em frente dos papéis queimados e, com a cara coberta de lágrimas, disse:
- Vim à procura do meu amigo e não o encontrei. Oh, como é que poderei desfazer o mal que fiz! Eu quebrei a felicidade dos homens, dos animais e das coisas. Eu esqueci a minha palavra e abandonei a minha promessa. Agora só encontro lumes apagados, casas vazias e cinza.

Então uma aranha desceu do teto, agarrada ao seu fio brilhante, e perguntou:

- És a fada Oriana?

- Sei que sou Oriana, mas já não sei se sou fada. Faltei à minha promessa e a Rainha das Fadas castigou-me: o vento levou as minhas asas e a minha varinha de condão transformou-se em poeira.

- É um castigo justo – disse a aranha, - porque tu abandonaste os teus amigos. Ouve o que aconteceu nesta casa: uma noite tu não vieste. E no dia seguinte, mal caiu a noite, o Poeta encostou-se à janela à tua espera. E quando uma folha mexia, quando um ramo seco estalava ou quando a brisa fazia dançar as ervas, ele dizia: “É Oriana”. Mas não eras tu. Tu nunca mais voltaste. E ele esperou noites e noites sem fim. Sem ler, sem escrever, sem fazer nada.
Passeava pelo quarto e falava sozinho. Até que uma noite, quando cantou o primeiro galo da madrugada, ele disse:
- “Oriana mentiu. Ela tinha-me dito: “Nunca, nunca te hei-de abandonar”. Mas eu tenho esperado, esperado, esperado. As noites têm passado devagar, uma por uma. Oriana já não aparece.
O mundo está desencantado. Quero ir para a cidade e quero tornar-me igual aos outros homens.
Quero tornar-me igual aos homens que não acreditam em encantos e que não escrevem versos. Vou queimar todos os meus livros e papéis”.

- E depois de ter dito isto fez um grande fogo na lareira com os livros e papéis onde estavam escritos os seus versos.
Ficou sentado a ver arder o lume e o reflexo da chama dançava na sua cara pálida e triste. E quando tudo se desfez em cinza, ele levantou-se e partiu para a cidade. E eu vi-o desaparecer na luz fria da madrugada.

- Foi minha a culpa - disse Oriana. - Como é que eu agora poderei fazer renascer os seus versos da cinza? Como é que eu hei-de fazer que a alegria e a amizade do meu amigo renasçam desta cinza? Ai, como o peixe me iludiu e me enganou com os seus elogios! Eu quero desfazer o mal que fiz. Irei à cidade buscar os meus amigos homens; irei aos montes buscar os meus amigos animais.


E, levantando-se do chão, Oriana despediu-se da aranha e partiu para a cidade. Atravessou outra vez a floresta, ferindo os seus pés nas pedras e rasgando-se nos tojos. Passou pelo caminho cheio de abismos e, quando era meio-dia, chegou à cidade.

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