quinta-feira, 11 de julho de 2013

A FADA ORIANA - VIII. O POETA


VIII. O POETA

Até que o sol se pôs, veio a noite e o rio escureceu. Oriana deixou de ver o seu reflexo. Levantou-se e ficou algum tempo imóvel a cismar. Depois olhou à sua volta e disse:
- Chegou a noite! Como o tempo passou depressa!
Então lembrou-se de que era a hora de ir visitar o seu amigo Poeta. Porque a única pessoa crescida a quem Oriana podia aparecer era ao Poeta. Porque ele era diferente das outras pessoas crescidas.
O Poeta morava no fundo da floresta, numa torre muito alta e muito antiga, coberta de heras, de glicínias e de roseiras.
Oriana voou sobre as árvores através do primeiro azul da noite. A porta da torre estava aberta, mas Oriana entrou pela janela com a brisa. As rosas da trepadeira estremeceram e dançaram quando ela chegou.
- Hoje vens tarde – disse o Poeta.
- estive debruçada sobre o rio a ver o meu reflexo – respondeu Oriana. - Demorei-me porque fiquei encantada com a minha beleza.
- Oriana, – pediu o Poeta – encanta a noite.
Então Oriana tocou com a varinha de condão na noite e a noite ficou encantada.
E o Poeta disse-lhe:
- O que tu me trazes é muito mais que beleza. No mundo há muitas meninas bonitas. Mas só tu que podes encantar a noite porque és uma fada.
Então Oriana sentou-se na beira da janela e contou as histórias maravilhosas dos cavalos do vento, da caverna dos dois dragões e dos anéis de Saturno. O Poeta disse-lhe os seus versos, que eram claros e brilhantes como estrelas. Depois ficaram os dois calados enquanto a Lua subia no céu. Até que um sino trouxe de longe o som das doze badaladas da meia-noite e Oriana e o Poeta despediram-se.
No dia seguinte de manhã foi levar a velha à cidade. Mal voltou da cidade voou rapidamente para o rio. Ajoelhou-se na margem e inclinou-se sobre a água. O seu reflexo apareceu todo doirado de sol à tona do rio.
- Mas que bonita que eu sou! – disse Oriana. - Hoje ainda estou mais bonita do que ontem. Serei eu realmente tão bonita como me vejo na água?
Oriana olhou bem para os outros sítios do rio onde se refletiam as árvores. E pareceu-lhe que o reflexo das árvores no rio era mais bonito do que as próprias árvores.
- Se calhar – pensou ela – o meu reflexo é mais bonito do que eu! Como é que eu hei de saber a verdade?
Então lembrou-se do peixe e chamou-o:
- Peixe, peixe, peixe, meu amigo!
O peixe apareceu e disse:
- Bom dia, Oriana. Aqui estou.
- Peixe, – disse a fada – preciso de ti. Quero saber se o meu reflexo no rio é mais bonito do que eu.
- Nada no mundo é tão bonito quanto tu – disse o peixe.
- Tu és muito mais bonita do que o teu reflexo. Tens os olhos mais brilhantes, o cabelo mais doirado, a boca mais vermelha.
- Achas que sim?! - perguntou Oriana. E ficou a cismar.
De repente teve uma idéia: Lembrou-se do espelho. Pensou:
- Vou ver o que diz o espelho – disse.
- Até logo, peixe.
E, rápida como uma seta, dirigiu-se a casa do Homem Muito Rico.
A janela estava aberta e a sala estava vazia.
Oriana entrou, disse bom dia às coisas e pôs-se em frente do espelho:
- Espelho – disse ela – olha-me bem, mostra-me como eu sou: vi o meu reflexo no rio e achei-me linda. Mas tenho medo de que o rio me tenha embelezado e lisonjeado como lisonjeia a paisagem. Mostra-me bem como eu sou para ver se o peixe disse a verdade e se eu ainda sou mais bonita do que o meu reflexo no rio.
- Oriana – disse o espelho -, sou, como já sabes, um espelho antiqüíssimo. Há séculos que todas as meninas querem saber se haverá no mundo alguém mais bonito do que elas. Vê-te bem. És muito bonita, mas há uma coisa muito mais bonita do que tu.
- O que é? - Perguntou Oriana, ansiosamente.
- Uma parede branca, nua e lisa.
- Não me fales mais nessa parede – disse Oriana, desconsolada. Mas depois olhou-se muito no espelho e disse:
- Eu acho-me linda.
- Ainda bem – disse o espelho. - mas não imaginas a quantidade de meninas que pelos séculos fora se olharem nos meus olhos de vidro e disseram: “Acho-me linda”!
- Então, adeus – disse a fada, um pouco zangada.
- Não te vás já embora. Quero-te pedir uma coisa.
- O que é?
- Tira outra vez o cabelo do Homem Muito Rico.
- Mas porque é que eu hei de fazer essa maldade?
- Porque ele passa o dia em frente de mim, a ver-se em mim e a dizer: “É um cabelo lindo”. E eu já não o posso olhar.
- nesta casa – disse Oriana – tudo dá mau resultado.
E foi-se embora.
Cá fora pensou:
- Nunca mais volto a essa casa: o espelho fez troça de mim. Aqui nada há que falte e tudo é irremediável.
E foi outra vez para o rio.
Sentou-se a beira da água e apareceu o peixe:
- Peixe – disse Oriana –, vi-me no espelho do Homem Muito Rico, e achei-me muito bonita, tão bonita como neste reflexo do rio. Mas o espelho disse-me que havia uma parede branca que era ainda mais bonita do que eu.
- os espelhos são uns sonhadores, estão sempre a imaginar o que não vêem. És muito mais bonita do que uma parede. Eu nunca vi ninguém tão bonito quanto tu. Mas acho que é uma pena andares tão mal penteada.
- Ah?! – disse Oriana, inquieta.
- Tens de mudar de penteado – disse o peixe. – Eu ensino-te!
E o peixe começou a ensinar:
- Faz riscas ao lado, puxa os caracóis Mara trás, puxa a onda da direita mais para frente, põe a onda da esquerda mais para trás e faz caracóis na nuca.
Oriana fez tudo o que o peixe disse, mas ele ainda não ficou contente. Mandou-a desmanchar o que tinha feito e recomeçar tudo outra vez. Oriana fez e refez ondas e caracóis. Até que começou a escurecer.
- Agora está melhor – disse o peixe. – Mas amanhã vamos experimentar outro penteado.
- Então até amanhã – disse Oriana.
E foi lentamente, cismando, pela floresta fora.
Era quase noite quando chegou à torre do Poeta. Senyou-se na beira da janela e perguntou;
- Achas que estou diferente?
- Não – disse o Poeta. – Acho que estás igual.
- Mas mudei de penteado.
- Não tinha reparado.
Oriana ficou calada, desconsolada com a resposta. O poeta pediu-lhe:
- Oriana, enche o ar de música.
Oriana tocou com a sua varinha de condão no ar e o ar encheu-se de música.
Estava lua cheia e o luar inundava tudo. Cheirava a madressilva e a rosas.
- Oriana – pediu o Poeta –, dança a dança da noite de hoje.
Então Oriana começou a dançar no ar, em pontas dos pés, a “Dança da Noite de Luar da primavera”.
Dançava como as flores dançam no vento, e os braços eram iguais ao correr dos rios.
O Poeta sentou-se na beira da janela a vê-la e do fundo da floresta vieram veados, os coelhos, as aves e as borboletas, para verem a dança da fada.
Até que o vento trouxe de longe o som das doze badaladas da meia noite. Oriana despediu-se do Poeta e desapareceu.
No dia seguinte, de manhã, Oriana, depois de levar a velha à cidade, foi correr a ajoelhar-se em frente do rio. O Peixe já estava à sua espera. Começaram logo a ensaiar penteados. O peixe mandou-a fazer uma coroa de flores, para por na cabeça. Oriana passou a manhã e a tarde a colher flores, a ver-se no rio e a ouvir os elogios do peixe. Esqueceu-se de ir à casa do moleiro e à casa do lenhador. Esqueceu-se de tomar conta dos animais. Esqueceu-se de regar as flores. Mas a noite foi visitar o Poeta.
E, daí em diante, Oriana foi abandonando um por um todos os homens, animais e plantas que viviam na floresta. Um dia abandonou também o Poeta. Foi porque numa tarde o peixe lhe disse:
- Vista à luz do Sol és linda, mas de noite vista a luz de uma chama, deves ser ainda mais bonita.
E nessa noite Oriana, em vez de ir visitar o poeta, encheu a margem do rio com pirilampos e fogoa-fátuos e passou a noite a ver-se na água.  
  
Foi uma noite maravilhosa. Parecia uma festa extraordinária e fantástica no meio do silêncio e da escuridão da floresta. Os fogos–fátuos e pirilampos eram iguais a estrelas pequeninas e Oriana via-se na água rodeada de luzes, de chamas e de sombras, com os seus olhos brilhantes, os seus cabelos luminosos, a sua coroa de lírios e as suas asas transparentes. 
E daí em diante nunca mais foi ver o Poeta. Esqueceu-se de todos os seus amigos. A única pessoa que ela continuava a visitar era a velha, porque sentia imensa pena quando a ouvia dizer que em tempos idos tinha sido nova e linda e agora era velha, enrugada e feia. Por isso, todas as manhãs lhe acendia o lume, lhe punha leite na caneca, café na lata, açúcar no açucareiro, pão com manteiga na gaveta e depois a guiava ao longo do caminho da cidade, para que ela não caísse nos abismos.
Mas mal voltava da cidade com a velha ia rapidamente para o rio, mirar a sua beleza e ouvir os elogios do seu admirador peixe.
E, durante a primavera, Oriana enfeitou-se com coroas e colares feitos de madressilva, margaridas, narcisos, flor de laranjeira, papoulas.
Depois no verão, Oriana enfeitou-se com cravos, rosas e lírios. E no outono enfeitou-se com folhas vermelhas de vinha, com dálias e crisântemos.
Mas quando chegou o inverno só havia violetas. E ao fim de algum tempo o peixe disse;
- Eu acho que o roxo das violetas diz muito bem com o branco da tua pele e o loiro do teu cabelo. Em todo caso há já dias e dias que não mudas de enfeites. Acho que devias variar.
- Como é que eu hei de variar? – respondeu Oriana. – Agora é inverno e não há flores na floresta.
O peixe pensou um bocado e disse:
- podias enfeitar-te com pérolas?
- Mas onde é que eu hei de buscar pérolas?
- Espera um instante – pediu-lhe o peixe.
E passado algum tempo voltou com um anel que deu à fada.
- Toma este anel.
Oriana pegou no anel e ele disse-lhe
- Põe o anel no teu dedo e voa até o mar. E quando chegares à orla das ondas chama pelo peixe Salomão, mostra-lhe o anel e pede-lhe que te traga mil pérolas do mar do Oriente.
Oriana assim fez.
Voou sobre as ondas e chamou:
- Peixe, peixe, peixe Salomão!
E apareceu um peixe preto e azul com os olhos vermelhos, e perguntou:
- Quem me chama?
- Sou eu, a fada Oriana. Trago-te este anel.
- Diz o que queres.
- Quero que me tragas mil pérolas do mar do Oriente.
- Senta-te naquele rochedo – respondeu o peixe Salomão – e espera que eu volte.
Oriana sentou-se no rochedo e esperou sete dias e sete noites. De vez em quando lembrava-se da velha, mas pensava:
“Com certeza que o peixe Salomão não se há de demorar. Ela nem vai dar pela minha falta. Conhece tão bem o caminho que, com certeza, não há de cair no abismo”.
Depois da sétima noite, o peixe apareceu ao romper do dia. Trazia uma grande casca de tartaruga que tinha lá dentro as mil pérolas.
- Obrigada, peixe Salomão – disse a fada.
E pegando na casca de tartaruga, voltou para a floresta.

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