quinta-feira, 11 de julho de 2013

A FADA ORIANA - VI. O HOMEM MUITO RICO

VI. O Homem Muito Rico

O Homem muito rico não tinha nem mulher, nem filhos e nem amigos. Só tinha criados. A casa dele ficava em meio a um jardim muito bem tratado: Relva, arbustos, flores  e ruas de  areia. Oriana deu a volta a casa para ver por onde havia de entrar. As portas estavam todas fechadas a chave e Oriana não as podiam abrir. Porque na casa do homem muito rico as fechaduras eram tão caras que nem uma varinha de condão as podia abrir.
Mas havia uma janela aberta. Era a janela da sala. Oriana espreitou e viu que na sala não estava pessoa nenhuma. Só lá estavam as coisas. Mas reinava uma atmosfera de grande má disposição. Os sofás e as cadeiras davam cotoveladas uns aos outros. As cômodas davam coices nas paredes. As jarras diziam as caixas e aos cinzeiros que não as apertassem. E as flores diziam:
- Não posso mais, não posso mais... Falta-me o ar...!
A sala estava cheia como um ovo. Oriana entrou e as coisas puseram-se a falar ao mesmo tempo:
- Oriana, Oriana! Tire-nos daqui!- Gritavam as flores.
- Oriana, diz a jarra que não me empurre! - pediu a caixa.
- Oriana, diz a mesa que não pise com tanta força! - pediu o tapete.
- Oriana, diz ao sofá que não me dê cotoveladas! - pediu a cadeira.
- Oriana, diz ao biombo que chegue para lá! - Pediu a parede.
- Oriana! - Pediu o espelho - tire-me daqui! Estou sempre a ver, vejo tudo... Esta sala está cheia coisas! Esta sala sem espaços, sem vazios... Sem largueza... Que assim magoa os meus olhos de vidro...!
- Sosseguem, acalmem-se; não falem todos ao mesmo tempo. - Pediu a fada.
Então as coisas calaram-se todas e depois a mesa disse;
- Oriana, não podemos estar aqui! Não cabemos nesta sala!  Nesta sala há coisas demais. Estamos todos apertadíssimos... E somos coisas com feitios diferentes e não nos entendemos muito bem. Eu sou uma mesa antiquíssima. Estava na sala de jantar de um convento... Eu sou comprida, mas a sala de lá era grande e eu cabia lá bem porque, além de mim, Só lá estavam os bancos. E aqui me sinto muito mal. As coisas estão sempre a dar-me encontrões... há uma grande imbirração entre mim e o sofá dourado: Eu sou toda lisa e ele é todo feito de torcidos. Não nos podemos entender. Eu sou uma mesa de convento, fiz votos de pobreza... Não posso viver nesta sala! Oriana, toca-me com a tua varinha de condão e faz-me ir pelos ares para ver o meu convento.
Depois falou a cômoda:
- Eu sou uma cômoda, muito bonita e muito antiga. Durante dois séculos morei no solar de uma quinta. Estava em uma sala muito grande e quem entrava via logo que eu era muito bonita... Durante o dia eu ouvia as vozes das crianças rindo no jardim e as ouvia a correr umas atrás das outras  pelo corredor. A noite ouvia só o cantar do vento, das rãs e o correr da fonte no jardim. Nos dias de festa acendiam-se muitas luzes no jardim. As pessoas passavam ao meu lado e diziam: “Ó, que cômoda tão bonita”!  E o dono da casa respondia: “Foi meu pai quem mandou fazer”. E daí a outras dezenas de anos, havia outro dono da casa que respondia: “Foi o meu avô quem mandou fazer”. Passaram-se mais dezenas de anos e outro dono da casa que respondia: “foi meu bisavô que a mandou fazer”. Tornaram-se a passar mais dezenas de anos e vinha um outro dono da casa que respondia: foi meu trisavô quem mandou fazer. Porque eu ia de geração em geração e conhecia os pais, os filhos, os netos e os netos dos netos. Eu era uma pessoa da família. Quando fui vendida todos choraram. As lágrimas das árvores caiam gota a gota no chão e as suas folhas faziam-me sinais de adeus. Aqui é diferente. Quando alguém de fora diz que sou bonita, o dono da casa diz; Comprei-a por cem contos. Oriana, leva-me daqui! Leva-me outra vez para a sala do solar da quinta!
Depois falou o espelho:
- Eu estava num palácio e em frente de mim havia  espaço, espaço e espaço. E o chão era de mármore  liso e brilhante. E eu estava no fundo de uma galeria silenciosa e solitária. E  contemplava o mudar das horas do dia. Vi os reis e as rainhas pálidos no dia da coroação, com suas coroas cintilantes e pesadas. Vi os ministros, os conselheiros, e os homens importantes com seu nariz comprido, a sua cara de caso e o seu ar solicito. E vi as namoradas de vestido branco que nas noites de bailes fugiam um instante para a galeria solitária. Elas deslizavam rápidas e leves negando sempre a flor que lhes pediam. E vi as multidões das revoluções que passavam, desesperadamente, partindo tudo, à procura de justiça. Vi, vi, vi.
Eu sou um espelho; passei toda a minha vida a ver. As imagens entraram todas dentro de mim. Vi, vi, vi. E agora estou nesta sala onde não há um lugar onde os meus olhos de vidro descansem. Oriana, tira-me daqui e põe-me em frente de uma parede branca, nua e lisa.
E por uma todas as coisas foram pedindo que as levasse para outro sitio.
- Minhas queridas coisas - disse Oriana -, eu não poso fazer o que me pedem. Se eu as fizesse desaparecer daqui, o dono da casa teria um grande desgosto. E eu não posso entrar numa casa para dar desgosto ao seu dono.
- Então, o que se há de fazer? - Perguntaram as coisas.
- Nada - disse Oriana. - nesta sala tudo tem um ar irremediável. Quando entro nas outras casas, faço aparecer as coisas que faltam. Mas aqui não falta nada. Aqui está tudo a mais. Era preciso tirar coisas. Mas eu não posso entrar em uma casa e tirar o que lá está.
- Então, se não podes tirar daqui faz crescer a sala para nós cabermos.
- Tenho muita pena - disse Oriana - mas é impossível. Quando o dono desta casa a mandou fazer disse ao arquiteto: “Faça-me uma casa pequena, por causa das invejas”.
As coisas calaram-se um instante, pensaram e disseram:
- Oriana, convence o dono da casa a dar-nos de presente a alguém que não tenha móveis.
- Isso! - disse Oriana - é uma ótima idéia. Já sei o que vou fazer.
Em cima da mesa estava um bloco de papel e uma caneta. Oriana pegou na caneta e escreveu:
“Quem dá aos pobres empresta a Deus. Dá metade dos teus móveis aos pobres”.
- ótimo! – Disseram as coisas.
- Oriana - disse o espelho - peço-te que tires da minha frente aquela bailarina de Saxe. Estou farto de a ver o dia inteiro  sempre com o pé no ar em posição de desequilíbrio. Os meus olhos de vidro não têm pálpebras. Só as noites são as minhas pálpebras. Mas durante o dia nunca posso fechar os olhos. E estou cansadíssimo de passar os dias a ver uma bailarina com o pé no ar.
A bailarina estava numa prateleira em frente do espelho. Oriana pegou nela e pô-la no outro lado da sala, em cima da cômoda, de maneira a que o espelho não a visse.    
- Obrigado - Disse o espelho.
Então ouviram-se passos no corredor e Oriana escondeu-se atrás do biombo.
A porta abriu-se e entrou o Homem Muito Rico. Mal entrou viu o bloco de papel que estava em cima da mesa. Leu o que lá estava escrito, ficou furioso porque era muito avarento, e exclamou:
- Que atrevimento!
Depois viu que a bailarina tinha sido mudada de sítio, ficou outra vez furiosos e exclamou:
- Oh!
Tocou a campainha e apareceu o mordomo.
- Chama imediatamente os criados todos - disse o Homem Muito Rico.
Daí a um instante entraram os criados todos. Puseram-se em fila em frente a porta. O Homem Muito Rico voltou-se para eles, virando as costas à mesa onde estava o papel e à cômoda onde estava a bailarina, e disse:
- passaram-se nesta casa duas coisas escandalosas. Ai de quem as fez! Quero que o culpado se acuse. Quero saber quem é que escreveu sentenças no papel e quem mudou a bailarina de sítio.
Os criados estavam assustadíssimos. Oriana, ouvindo este discurso, ficou muito aflita com o que tinha feito. Num abrir e fechar de olhos tocou a sua varinha de condão no bloco, fazendo desaparecer o que lá estava escrito e tocou na bailarina, fazendo-a voar para cima da prateleira.
O Homem Muito Rico pegou no bloco, virou-o para os criados e disse:
- Quem escreveu isto?
Os criados viram uma folha em branco e responderam:
- No bloco não está nada escrito.
O Homeme Muito Rico pensou que estava a sonhar. Não sabia o que havia de dizer, nem sabia que cena é que havia de fazer. Tossiu e disse com uma voz muito severa:
- Quem é que tirou a bailarina da prateleira?
Mas olhou para a prateleira e viu que a bailarina já lá estava outra vez. Pensou que estava doido. Ficou outra vez furioso  e muito envergonhado com a figura que estava a fazer. Não sabia o que havia de explicar aos criados. Tornou a tossir e disse:
- Eu estava a fazer uma experiência. Já se podem ir embora.
Os criados foram-se embora e o Homem Muito Rico sentou-se numa cadeira e começou a falar sozinho:
- Isto foi uma partida. Mas foi tão bem feita que eu não percebi nada. Foi com certeza a criada da sala. A estas horas estão todos na cozinha a rir-se de mim. Tenho que despedir a criada da sala.
Oriana estava aterrada.
- Que horrível! - Pensava ela - aqui tudo dá mau resultado. Não consegui ajudar ninguém.
Enquanto pensava isto espreitou por cima do biombo. O Homem Muito Rico estava sentado de costas para ela e Oriana viu que ele era careca como um ovo. Então ficou cheia de pena. Resolveu pôr-lhe cabelo. Tocou-lhe com sua varinha de condão na careca e imediatamente a careca se cobriu de milhares de cabelinhos muito curtos. O Homem Muito Rico sentiu uma comichão na cabeça. Foi ao espelho ver o que era. E viu que tinha a cabeça cheia de cabelo novo a nascer.
Primeiro não acreditou no que viu. Estava um instante de boca aberta, sem poder falar. Depois gritou:
- CABELO! CABELO!
Quando acabou de gritar, disse:
- Porque será que me nasceu cabelo? Há tantos anos que eu era careca e experimentei tantos remédios que nunca, até hoje, tinham dado resultado!
Ficou um instante calado e de repente bateu com a mão na testa, exclamou:
- Já sei, já descobri o que foi: Foi aquela viúva que me veio pedir emprego para o filho! Ela começou a falar da sua pobreza e eu comecei a falar da minha falta de cabelo. Ela disse:
- “Não tenho dinheiro nenhum”
E eu respondi:
- “Não tenho cabelo nenhum”!
E ela então disse-me que ia mandar um remédio que fazia crescer o cabelo. E no dia seguinte mandou-me um frasco com remédio dentro. Eu pus o remédio e nasceu o cabelo! Tenho de lhe agradecer! Tenho de lhe arranjar um emprego para o filho! Vai ser já!
E o homem muito rico, muito excitado, pegou no telefone e marcou um número.
Foi a viúva que veio ao telefone. Disseram-se bons dias e depois o Homem Muito Rico disse:
- Minha senhora, estou desvairado e louco de gratidão. Ajoelho-me aos seus pés e beijo as suas mãos. Imagine que já tenho cabelo! Se calhar até vou ter caracóis! E até me parece que o cabelo que me está a nascer é loiro. Os grandes ideais da minha vida foram sempre ser rico e ser loiro. Até aqui só tinha conseguido ser rico. Agora, graças a si, vou ser loiro! Loiro! Loiro! Quero-lhe agradecer. Quero falar com o seu filho!
O filho da viúva veio ao telefone e o Homem Muito Rico disse-lhe:
- Tenho um lugar para si! Um lugar magnífico, perfeito, ideal. Basta lá ir duas vezes por semana e ganhar trinta contos por mês. Não tem nada que fazer. É um lugar importantíssimo. Tinham-mo oferecido a mim, era para mim, mas agora é para si!
Ouvindo isto, Oriana pensou:
- Até que enfim! Consegui fazer qualquer coisa nesta casa. Já me posso ir embora! Uf!

E saiu pela janela.

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